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Saiu o resultado estadual da Aldir Blanc e tá parecendo Bolsa Família

O gritante protagonismo das cotas é coerente com programas de distribuição de renda, mas estranho se pensarmos no conceito de política cultural

  • Foto do(a) author(a) Flavia Azevedo
  • Flavia Azevedo

Publicado em 9 de janeiro de 2025 às 15:29

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Em primeiro lugar, defender a existência dos programas de distribuição de renda, das cotas em diversas áreas e das políticas culturais. Não podemos abrir mão de nenhum desses dispositivos se pretendemos caminhar rumo a um nível suficiente de civilidade. Só que cada coisa tem a própria função.

Os programas de distribuição de renda (tipo o Bolsa Família) servem para tirar pessoas da vulnerabilidade financeira, independentemente de talentos e vocações. As cotas, por sua vez, têm a missão de incluir grupos minorizados em diversos espaços nos quais, antes, só cabiam os “privilegiados”. As políticas culturais, por fim, servem para impulsionar a indústria cultural do país.

Evidentemente, precisamos equilibrar o nosso ecossistema cultural da forma mais includente possível e o sistema de cotas está aí como instrumento à disposição dessas políticas. Que, claro, precisa ser aplicado em todos os editais federais, estaduais e municipais. Com máxima eficiência, transparência e, principalmente, sabedoria. Aí é que tá.

Por um lado, precisamos garantir que pessoas dos grupos minorizados estejam em todos os momentos da cadeia produtiva cultural, desde a criação até o consumo. Por outro lado, há a necessidade de cuidar da qualidade do nosso produto, gerar resultados capazes de impulsionar emprego e renda. Nossa “entrega” precisa ser competitiva. Esses são dois interesses que podem caminhar lado a lado.

Isso porque além de cumprir a necessária reparação social, a inclusão de pessoas dos grupos minorizados na cadeia produtiva da cultura, por si só, já favorece a diversidade de temas e abordagens em nossos produtos. Não falaremos de mulheres sem mulheres, de negros sem negros, de PCDs sem PCDs, por exemplo. Abarcar todo esse conteúdo enriquece nossos resultados, evidentemente.

Só que a diversidade é apenas um dos elementos para esse enriquecimento. Assim como a vulnerabilidade deveria ser apenas uma das características que favorecem o acesso do indivíduo ao recurso público destinado à produção de cultura. Um cruzamento inteligente entre competências e vulnerabilidades nos traria o resultado forte, competitivo, justo e verdadeiramente capaz de refletir todas as nossas potencialidades.

Veja que se elegemos apenas a competência técnica como critério de acesso a recursos públicos para produção de cultura e arte, produzimos um ambiente cultural masculino, elitista e branco. Isso porque, como sabemos, as melhores oportunidades de formação ainda estão mais acessíveis às pessoas com esse perfil. Por outro lado, se as cotas se sobrepõem, em importância, à competência técnica, cometemos injustiças individuais e também comprometemos a saúde da nossa cadeia produtiva. O equilíbrio, portanto, é necessário. Sabedoria pra andar nessa corda bamba. Olhar atento para o coletivo. Honestidade.

Daí que, pelo jeito, esse equilíbrio tá em falta. “Tá parecendo Bolsa Família”, foi o que pensei ao ler a lista com o resultado do edital estadual referente à Política Nacional Aldir Blanc. Em várias categorias, o gritante protagonismo das cotas - em relação às notas que traduzem competência técnica e artística - é coerente com programas de distribuição de renda, mas estranho se pensarmos no conceito de política cultural.

Abaixo, alguns exemplos de resultados na parte ligada ao audiovisual:

Categoria “Formação em games” (cada um recebe 100 mil reais) – dos cinco contemplados, quatro são cotistas. A melhor nota, entre eles, é 85,33. O sexto colocado (que ficou de fora, como suplente) tem nota 89,00.

Categoria “Cineclubes” (cada um recebe 40 mil) – dos 15 contemplados, 13 são cotistas e dois tem favorecimento por "territorialidade". O primeiro suplente ficou de fora com nota maior do que todos os 15 contemplados. Ele se chama Eudaldo Júnior, submeteu o projeto “Cineclube Memorabília”, é do interior, teve nota 98,33 e não é cotista.

Categoria “Desenvolvimento de roteiro de longa-metragem” (cada um recebe 150 mil) - são cinco classificados, todos cotistas. De fora, na primeira vaga de suplente está o cineasta José Araripe com o projeto “Soy loco por ti, Capinam”. Ele não é cotista e obteve nota 101. Mais alta do que quatro dos classificados e com apenas um ponto a menos do projeto que ficou em primeiro lugar.

Categoria “Produção de curta-metragem” (cada um recebe 100 mil) – são dez classificados com oito cotistas. Entre suplentes e desclassificados, diversas notas maiores do que as da maioria dos aprovados.

Entendeu? Observe que, nas categorias destacadas (e em outras que eu não transcrevi), os projetos com melhores pontuações - que, portanto, gerariam melhores produtos - não serão realizados e isso traz uma questão. Precisamos pensar em como promover a justiça social sem, com isso, cometer outras injustiças. O desafio me parece óbvio: encontrar o equilíbrio do mérito com a vulnerabilidade.

O objetivo principal da Aldir Blanc (e de outras similares) não é transferência de recursos, mas o desenvolvimento da nossa indústria cultural com geração de emprego e renda. Ou seja, trazer prosperidade para o setor, fazer circular dinheiro em negócios rentáveis. Não conseguiremos isso cometendo a distorção de colocar vulnerabilidade como característica hierarquicamente superior a capacidade de realização. Esse é o fato, você concordando ou não.