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Praia do Porto da Barra: de "terceira melhor do mundo" a "nosso pior lugar"

Capaz de ainda ter quem diga "só alegria!", numa piada de mau gosto, naquela caótica beira- mar

  • Foto do(a) author(a) Flavia Azevedo
  • Flavia Azevedo

Publicado em 11 de setembro de 2021 às 11:00

 - Atualizado há 2 anos

. Crédito: .

Em 2007, ela foi escolhida como a terceira melhor do mundo pelo jornal britânico The Guardian. Pra mim - que não conheço as ilhas Cíes, na Espanha, nem o Parque Natural Tayrona, na Colômbia (primeiro e segundo lugares, na opinião do jornal) - a praia do Porto sempre foi a segunda. Melhor do que ela, só Cacha Pregos, na Ilha de Itaparica, que, recentemente, teve as areias (e muitas construções) engolidas pelo mar. Só por isso vou citar aqui sem correr o risco de estimular aglomerações. Nem vá que não tem espaço pra esticar sua canga.

(Iemanjá sabe o que faz.)

(Obrigada, Iemanjá.)

Tirando Cacha Pregos, portanto, nenhuma praia que eu conheça (e não são poucas) jamais chegou aos pés daquelas águas perfeitas, da facilidade de acesso, da certeza de sempre encontrar boa gente, afetos e risadas. O Porto foi responsável por quase todas as vezes em que sai pra trabalhar "com biquíni por baixo" da roupa, na cidade da Bahia. Lá, inventei de aprender a mergulhar e não deu certo, mas foi massa. Aprendi a buscar cerveja na areia - estando em veleiro - mesmo sem saber nadar direito. Aquelas águas já foram destino final de fantasia do Olodum suada, pra ver o sol raiar, e o topless, estranhado no Posto 9, era natural. Tenho fotos impressas, muita gente tem, podemos provar. Meu filho ainda aproveitou um monte do Porto apesar de o nojo da areia ter começado a tirar o gosto bom e me fazer parecer "fresca" para algumas amizades.

(Não convivo bem com os ratos e pombos que moram naquela área, que antes eram apenas supostos, mas passaram a circular entre as cadeiras, na maior moral.)

(Os animais são atraídos pelo esgoto  mas também pelo volume absurdo de lixo deixado por comerciantes e banhistas.)

(O volume absurdo de lixo deixado por comerciantes e banhistas estendeu meu nojo às pessoas que se comportam dessa forma e eu tinha que encontrar lá.)

Foi ficando dificil, mas insisti até início de 2020. Desviando os olhos de quem larga resto de acarajé e canudo na areia. Fazendo de conta que não vi a lata jogada no mar, pra evitar briga. Usando sandálias e sem nunca mais sentar no chão que a leptospirose parecia gritar "tô aqui, vú?". Cheia de cuidados, pelo menos até a terceira cerveja gelada que Newton trazia, no isopor, mesmo que eu dissesse "hoje vou só de água", frase na qual ele nunca botou fé. Já que ele tinha tido o trabalho de trazer, não me custava ser gentil e consumir do cara que tinha me resgatado dos gritos que, recentemente, começaram a ser agressivos. "PPPSSSIUUUUUU, HEIIIIII,  CADEIRAAAA, SOMBREIRO?" Antes, eles ofereciam, depois passaram a ameaçar. "Tô na barraca de Newton" era a única senha que me liberava pra descer as escadas sem ver briga entre eles (com empurrões e ofensas) nem me meter em confusão. No dia em que, depois de ouvir muito grito, eu disse "velho, me deixe, se eu quiser, lhe peço", tive que escutar um monte de liberdades. Não foi bom.

De repente, amigos/as começaram a se dizer "fique ligado/a" e deixar as coisas com alguém "olhando" pra ir mergulhar, não era mais tão tranquilo. O Porto passou a não ser lugar pra ir aos domingos, depois não aos sábados e, em seguida, era pra ter cuidado mesmo em dias "de semana". Em pé, olhando ao redor, como se numa eterna festa de largo, porém daquelas em que tiro, porrada e bomba podem acontecer. Sendo que isso não era força de expressão. Passou a rolar e muita gente viu. Aquele lugar começou a ser perigoso, quem diria? Os/as amigos/as começaram a migrar para a Gamboa e Prainha do MAM. Eu passei a ir bem menos. Nesse tempo, a praia onde passei manhãs inteiras, no fim da minha gravidez, há dez anos, me movimentando entre desconhecidos, num conforto ancestral, já não era lugar pra frequentar sozinha.

Há anos, o Porto já vinha embrutecendo. E olhe que eu peguei o barco do fim dos 90 pra cá, nem tô comparando com o "Porto da Barra Limpa", lá dos 70, vivido e cantado com poesia transbordante. Nos últimos tempos, a decadência da "terceira melhor praia do mundo" foi veloz e isso diz muito sobre a nossa própria decadência. O Porto encaretou (recentemente, quem fizesse topless era capaz de ser apedrejada) e ficou tão sujo que um amigo disse ter visto fila de ratos mortos no mar. Pela boca dos seus comerciantes, mostrou os primeiros traços da nossa violência e não há qualquer situação de mercado que justifique a abordagem agressiva de clientes chegando à praia. Finalmente, agora, o Porto é lugar de cadáveres boiando, rabecão na areia e gente assassinada no asfalto.

(Quem vai lá é o coelho que praia, com medo e nojo, não é praia.)

Alguns dirão que o sucateamento é proposital. Do outro lado, afirmam que o problema é o ponto de ônibus trazendo gente de toda a cidade pra aquele pedaço. Bobagens. Daqui, acho que o Porto é um dos termômetros da nossa alma e que a boa mistura, naturalíssima e sem regras, sempre foi, ali, o maior charme. Aquele lugar parecia "acontecer paralelamente", digamos. Livre e paradisíaco de um jeito especial. Do maconheiro à dondoca, do rico ao pobre, da família à pegação, da natação de bebês aos bêbados, dos atletas aos velhos boêmios de fim de tarde, dos gringos deslumbrados aos vizinhos acostumadíssimos, tudo e todos sempre estiveram à vontade, enquanto éramos mais saudáveis. Até que adoecemos e levamos o Porto a esse lugar. Sintoma grave. Febre alta. Convulsão.

Na última quarta, assistindo ao telejornal, vi, pela primeira vez, o Porto tomado por gente de um só tipo e é óbvio que não ia prestar. A praia passou a pertencer ao tipo de gente que pula e joga crianças pela balaustrada, para furar o controle que pretende preservar a saúde de todos/as. No meio de uma pandemia, comerciantes emprestavam as próprias camisetas para que clientes vestissem e passassem pelo bloqueio, enganando a fiscalização. Pura bandidagem. É fim de linha, eu acho. O Porto perdeu a poesia e eu perdi o Porto. Agora, ele é de gente que toca fogo em pessoas e atira. Gente do tipo violenta, esse tipo que encontramos em todas as classes sociais. O Porto não é mais de todos e todas. Agora, é dos ratos, dos pombos e dos (nada doces) bárbaros. É a nossa deterioração coletiva impressa no cartão postal. Idiotizados que somos, capaz de ainda ter quem diga "só alegria!", numa piada de mau gosto, naquela caótica beira-mar. Pra continuar no baianês, prefiro dizer que "ficou na saudade". Como uma dolorosa metáfora do que nos transformamos, o Porto se recolhe, deixa de ser. Ao ver aquela imagens, não penso em nada além de cortinas fechadas. É o fim de uma era naquela praia que já foi bem mais do que areia e mar.