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Por que tanta gente "boa" correu pra defender Silvio Almeida?

O comportamento predatório masculino é comum, estrutural e não tem nada a ver com etnias

Publicado em 7 de setembro de 2024 às 08:00

Como sabemos, Anielle Franco é uma mulher negra, atualmente ministra da Igualdade Racial, no Brasil. Silvio Almeida é um homem também negro que, até sexta (6), era nosso ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania. Até então eram colegas, responsáveis pela condução de importantíssimas pautas sociais no Brasil. Em tese, portanto, gozavam de idêntico poder e prestígio.

Num desses episódios infelizes da nossa história, nesta semana ambos surgiram protagonizando um caso horrível que foi tornado público quando a ONG Me Too Brasil - cuja função é defender mulheres vítimas de violência sexual - divulgou ter recebido denúncias contra o ministro dos Direitos Humanos. Entre as denunciantes, está a ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco.

Ao mesmo tempo em que a denúncia de Anielle surpreende a todos, outras histórias começam a rolar na internet. Uma professora chamada Isabel Rodrigues chegou a publicar um vídeo dizendo que também foi assediada por Silvio, em 2019. Por fim, a situação ficou insustentável, o ministro acabou demitido e as acusações passam a ser investigadas por uma comissão de ética e pela Polícia Federal.

(O acusado nega tudo, claro, fazendo o discurso clássico.)

Esses são os fatos até aqui. Essas são as principais informações. Sobre elas, leio e assisto dezenas de manifestações inflamadas, nas redes sociais. Até o momento, ninguém, além dos envolvidos, conhece a verdade plena. Tudo que dissermos é “opinião”, direcionamento de empatia e hierarquização de pautas. Nesse contexto, fico besta ao ver o quanto a defesa espontânea do ex-ministro é veemente e, em alguns casos, até “emocionada”. Em nome de quê, afinal?

Na missão de defender o acusado, algumas pessoas racializam a acusação. Chamam de “racismo misândrico”. Outras, voltam o olhar para a política partidária. Perdidos nas militâncias, só não topam enxergar o óbvio: a questão de gênero se sobrepõe a qualquer outra e este é um excelente exemplo do que rola em todos os âmbitos da nossa estrutura social. O crime (se houve) é questão de gênero. O incômodo que a denúncia provoca em muita gente também obedece à lógica que prioriza o masculino, seja de esquerda ou de direita, de qualquer etnia, maioria ou minoria social.

É evidente que os ritos legais precisam ser observados, que existe uma investigação pela frente e a possibilidade - sempre presente - da tal “denunciação caluniosa”. Também concordo que o homem negro precisa ser protegido de nossa justiça racista e da opinião pública que tende a ver, em cada um deles, um marginal. Tudo verdade e muita luta a ser lutada até alcançarmos nível suficiente de civilidade. Mas, gente, vamos pensar? Se chamamos de racismo quando do outro lado há uma mulher, TAMBÉM NEGRA, falando de assédio, a desqualificação da palavra feminina chega a níveis escandalosos demais. Não dá nem pra tentar disfarçar.

Anielle e o ministro estão em condição de igualdade étnica, política e social. O que rompe essa equivalência é o gênero de cada um. Por que tanta gente “boa” correu pra defender Silvio Almeida, dizendo que ele está mais vulnerável? Por que o acusado seria o “lado mais fraco”? Evidentemente, porque ele é o macho, o que se prova, então, mais uma vez, privilégio e não vulnerabilidade. Quando entra esse dado, pula pro lado de lá até meu amigo bacana e descolado, todo disfarçando com outras pautas. Não importam as estatísticas nem probabilidades. Não importa nem a realidade de que é a mulher negra que ocupa o último degrau da nossa perversa hierarquia social.

Quem não defende o acusado pra não dar demais na vista o coloca ao lado da denunciante, dentro da mesma decepção, ou seja, no mesmo barco. Não estão. Repare: a ministra fez uma denúncia, e é isso que precisamos fazer quando necessário. É o que pedimos às mulheres que façam. Isso é reação e não parceria com o denunciado. Provado o crime, Anielle tem uma vitória importante, interfere positivamente na história, ajuda a coletividade.

Até que se prove o contrário, portanto, minha empatia e orgulho estão com ela, exatamente pela natureza do caso. Isso porque, assim como eu, TODAS as mulheres que conheço, em algum nível, já sofreram violência masculina, inclusive sexual. Muitas vezes, esses crimes são praticados por caras “acima de qualquer suspeita”, com “currículo respeitável”, super bonzinhos e tal. Ou seja, o “ninguém acreditaria” é um escudo que faz parte.

O comportamento predatório masculino é comum, estrutural e não tem nada a ver com etnias, posicionamentos políticos nem posturas públicas admiráveis. É do homem que produzimos em cada esquina da nossa sociedade. Pra sair desse ciclo, é preciso decisão e esforço individual, o que é raro. Da “cultura do estupro”, da “objetificação de mulheres” e de todas as violências derivadas, homens de todos os tipos e qualidades fazem parte. No mínimo, porque não topam, no dia a dia, sequer discutir o assunto. Em geral, eles acham chato.

Essas pautas - que surgem fortíssimas em defesa do ministro - não são mais do que penduricalhos que têm espaço apenas porque a voz feminina é sempre questionável. Talvez “exagerada”, muitas vezes “fora de lugar”. Sempre há algo a “proteger” do lado de lá: uma família, uma carreira, uma ideologia, a cor da pele, a reputação. Tudo importa na imagem do homem e a gente que se lasque do lado de cá. Pois digam o que quiserem. Nessa - e em todas as brigas - eu sei, exatamente, com quem e onde devo estar.

Flavia Azevedo é articulista do Correio, editora e mãe de Leo