Por que a delegada Patrícia não evitou o próprio feminicídio?

O "diagnóstico" rasteiro de “dependência emocional” não dá conta da complexidade

Publicado em 17 de agosto de 2024 às 08:00

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Quando uma mulher é agredida e/ou morta por um homem com quem mantinha alguma relação romântica, o senso comum se divide. De um lado, há quem diga que “alguma coisa ela fez pra provocar”. Do outro, o coro sustenta que “ela não tinha como evitar”. Acho que, talvez, entre a canalhice do primeiro grupo e a acomodação do segundo, exista muita coisa a se pensar. Sobre todas nós, claro.

O homem que confessou o assassinato da delegada Patrícia Jackes era “noivo” dela. Tancredo Neves coleciona 26 queixas e quatro inquéritos contra ele. A maioria dos casos está relacionada à violência contra a mulher. Patrícia era delegada e dava palestras exatamente sobre violência contra a mulher. Logo, em tese, tentar alguma gracinha com Patrícia seria o ponto final da “carreira” do feminicida. Paradoxalmente, no entanto, foi justamente no encontro com ela que o assassino teve a oportunidade de cometer o “grande ato”.

Há mais detalhes nessa história tenebrosa, mas comparar o “currículo” do feminicida (a quem devo chamar de “suspeito”, apesar da confissão, porque ainda não foi condenado) ao da vítima já traz toda a falta de nexo que me pasma. Isso porque nenhuma de nós me parece mais preparada para lidar com um tipo como o tal Tancredo. Em minha fantasia, alguém como Patrícia jamais seria vítima desse traste. Ela era uma mulher adulta, de 39 anos, que - além de informação e independência financeira - tinha treinamento e permissão para transitar armada em qualquer situação e espaço.

Isso quer dizer que a vítima não dependia financeiramente do “suspeito”, essa tão recorrente vulnerabilidade feminina que, muitas vezes (principalmente quando a relação envolve filhos), paralisa mulheres que sofrem violência doméstica. Também significa que ela poderia ter acesso à ficha criminal do “suspeito” quando quisesse. Além de tudo, Patrícia tinha conhecimento suficiente (e dava palestras sobre) para entender os primeiros sinais de violência e, em seguida, prever e escapar da óbvia escalada. Em último caso, Patrícia tinha habilidade (e instrumento) para matar, na eventualidade de um confronto físico com o criminoso. Seria legítima defesa e ela saberia como provar.

Entre os “detalhes” assustadores do caso, há o relato de parentes e amigos que afirmam agressões contínuas do “suspeito” contra a delegada. O irmão da vítima diz que o tal “suspeito” já havia agredido até o padrasto idoso de Patrícia. Nesse bolo, ainda há imagens da delegada machucada pelo “suspeito”, uma medida protetiva pedida por ela e um inacreditável casamento marcado entre os dois para quarta-feira passada (dia 14). Antes desse dia, ela foi assassinada pelo “noivo”.

Então, a pergunta óbvia é: se reunia as condições ideais – inclusive aquelas preconizadas por todas as campanhas que tentam combater a violência contra a mulher -, por que a delegada Patrícia não evitou o próprio feminicídio? Arrisco resposta: porque o buraco é mais embaixo e o “diagnóstico” rasteiro de “dependência emocional” não dá conta da complexidade. O apego excessivo pode até ser, de fato, parte da vulnerabilidade do feminino padrão. Mas ele não nasce do nada. O que, talvez, nos falte perceber é que toda vez que uma mulher é a vítima perfeita ela é, também, alguém que “cumpriu seu papel social”, ou seja, agiu exatamente como esperado. Inclusive se apegando “excessivamente”, rapidamente e abrindo mão da racionalidade.

O tal “esperado” é um conjunto de pensamentos, frases, crenças e atitudes que nos tornam de fácil manejo. São regras das quais, coletivamente, ainda não conseguimos nos livrar, por mais barulho que se faça. É tudo que, quando descumprimos, nos torna “estranhas”, “malucas” e “difíceis de lidar”. Quer um exemplo? A julgar pelo que foi divulgado até aqui, Patrícia – assim como muitas de nós - morreu de acreditar em “a ex dele é maluca”, “comigo é diferente” e “a mulher certa conserta o homem errado”. Também em “ele me ama”, bastando que, para isso, o homem declare amor. Assim fica bem fácil nos manipular.

Na causa mortis ainda podemos incluir o “ele é nervoso, mas é gente boa”, “se exaltou, mas foi só uma vez”, “é o jeito dele, posso fazer nada”, “eu também tive culpa na briga” e outros atenuantes que ainda damos, de graça, pra qualquer otário. Isso, numa primeira camada. Aprofundando mais um pouquinho, encontramos a compreensão do “você vai morrer sozinha” como se isso fosse anúncio de desgraça. Por fim, a coisa mais grave: a palavra “autoestima” significando apenas “se cuidar” e se achar bonita quando, na verdade, esse é o menor detalhe.

Em significado pleno, autoestima nos inspira, em relação a nós mesmas, o cuidado que, tão naturalmente, temos com o outro. Autoestima de verdade não acolhe, por exemplo, a mínima descortesia, que dirá um grito ou um tapa. Gostar de mim mesma faz meu afeto ser totalmente condicionado a reciprocidade, me provoca desinteresse diante de qualquer “esfriamento”, me faz aplicar a mim mesma o conceito de “responsabilidade emocional”. Gostar de mim mesma, sinceramente, me impede até de stalkear macho. Porque, né? É humilhante esse lugar.

Estimar a si mesma não deveria depender de estar, no momento, se achando bonita, rica ou em pleno sucesso profissional. É apenas se gostar com a mesma generosidade que, em outros momentos, eu mesma direcionei a terceiros, apenas por estar apaixonada ou carente demais. É estar aqui para mim, por mim, em primeiríssimo lugar. É proteger a minha própria pessoa com a mesma paixão com que protejo meu filho e outras pessoas amadas. É, principalmente, nos detalhes: defender o meu tempo livre, o meu prazer, a minha paz, as minhas vontades. É não forçar a minha barra só pra agradar.

A autoestima bem colocada é nossa máxima transgressão, entenda. É o que nos faz descumprir o tal “esperado”, é o que transforma cada uma de nós na própria e particular heroína. É o que predadores não podem prever, a única coisa que não esperam de nós, é o fator surpresa que desestrutura e eu sei do que estou falando. Gostar de si mesma é, finalmente, a arma secreta que, possivelmente, faltou a Patrícia e sem a qual todas nós estaremos sempre irremediavelmente vulneráveis.

(O feminicida está posto, assim como o assaltante, o estuprador, o psicopata golpista do Tinder e tantas outras qualidades de bandidos que não posso controlar. Só posso agir em mim, só podemos agir em nós e este texto é sobre isso. Se você chegou até aqui achando que estou “culpabilizando a vítima”, sugiro que respire, releia e pense melhor.)

Flavia Azevedo é articulista do Correio, editora e mãe de Leo