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Flavia Azevedo
Publicado em 5 de março de 2025 às 05:00
Em cada esquina da Barra, o som dos leques com as cores do arco-íris anunciavam a presença forte de algumas letras da sigla LGBTQIA+. Casais de homens seminus andavam de mãos dadas pra cima e pra baixo. Abundantes beijos entre barbados faziam parte do cenário. Diante disso, mulheres hetero reclamaram que estão no "mapa da fome" sexual. Na opinião delas, em 2025, finalmente "os viados tomaram conta do Carnaval de Salvador". Será? >
Pessoalmente, não tenho do que reclamar. Precavida, já saí de casa com o meu próprio homem-cis-hétero porque é assim que eu gosto e não posso fazer nada. De forma que não fui afetada por nenhum movimento, não entrei nesse tal "mapa da fome", não criei demanda, nem atuei na balança comercial. A mim, coube, apenas - de barriga cheia - estudar o caso. Ou seja, se você quer uma opinião feminina, isenta e sem qualquer "mágoa", aqui está.>
Conforme as cordas do Crocodilo subiam, na noite de domingo, no Farol da Barra, uma revoada de homens brancos pulava para dentro delas, se organizando pra desfilar. Enquanto Daniela cantava que "minha alma não tem casinha", eles se agitavam em seus abadás e eu lembrava do "Beco da Off", que mudou de nome, mas continua - firme e forte - lá. Também de outros antigos guetos da comunidade LGBTQIA+. Uma ou outra mulher - acho que mães ou irmãs dos componentes - estavam em minoria absoluta. Talvez, iludidas. Ou, então, sem esperança (ou desejo) de mach, pelo menos heterossexual.>
Na véspera, porém, eu havia me arriscado (por alguns poucos minutos) na pipoca de Kannário e não vi leques coloridos ou beijos homossexuais. Do mesmo modo, esses adereços não eram tão abundantes - porém existiam - enquanto Xandhy começava a desfilar. Na pipoca dos caras que cantam arrocha - e de quem não lembro os nomes - o ambiente era visivelmente heterossexual. De volta ao domingo, ao redor do trio de Armandinho tinha um monte de héteros e gays conhecidos, além de muitos casais de homem com homem, mulher com mulher e homem com mulher. Este - o da mistura - é meu cenário ideal. >
Verdade absoluta que o bloco de Cláudia Leitte também é território gay masculino, assim como a pipoca de Ivete. Mas não podemos dizer o mesmo da turma que segue Bell Marques. No Alerta, o samba tava bom e vi maioria de casais heterossexuais. Atrás do trio de Luis Caldas, o clima também não era "gay" e vi muitos beijos entre eles e elas. Inclusive, como nos velhos tempos, entre elas e Filhos de Gandhy vestidos a caráter. Outra coisa: nas rodas do Baiana System - o acontecimento mais interessante do Carnaval - só tem "viado"? Acho que isso tá longe de ser verdade. >
Mais uma coisa que observei: muitos dos homens que passavam com camisas de camarotes pareciam gays, acho que talvez a maioria deles. Porém, na galera "à paisana", no chão, de roupa normal, as proporções me pareceram bem equilibradas. De forma que - também no Carnaval -, conforme sempre orientaram nossas mães, tudo é questão de escolher direitinho "onde" e "com quem" andar. No caso, pra aumentar as chances de matches, mulheres heterossexuais deveriam ter saído de casa informadas e não "bestando", pra depois ir nas redes sociais reclamar.>
Observe: os territórios da folia sempre foram mapeados. A existência de espaços com predominância de homens gays vem lá dos anos 1980 e você pode conhecer detalhes no trabalho delicioso apresentado, em 2010, por Márcio Correia Campos (professor da Faculdade de Arquitetura da UFBA), cujo título é “De muquiranas, piratas e marinheiros a gays: o espaço dos homossexuais dentro do carnaval de Salvador nos últimos 25 anos”. Foi meu amigo Sérgio Maggio quem me mandou essa preciosidade que vale a pena ler pra entender o movimento e afirmação política da população LGBTQIA+ em nossa maior festa popular. Porque, claro, nada é por acaso.>
Entender o processo e a intencionalidade é massa. De acordo com a pesquisa - e com o que muita gente sabe - tudo começou na Praça Castro Alves, lá nos anos 1980. Com a criação do circuito Barra/Ondina, parte da comunidade se deslocou para a Barra. Primeiro, para um ponto em frente à finada Caixa Econômica Federal. Depois, para o Beco da Off, que hoje se chama Beco das Cores e ainda funciona como ponto de encontro dessa população. Agora, oficial. A vocação homossexual do lugar nasceu de forma espontânea, a partir de uma boate gay - a Off Club - que existia ali e era famosa na cidade, durante todos os dias do ano. >
O trabalho do professor Márcio, que Serginho me enviou, faz uma análise detalhada até 2010. Depois disso, muita coisa aconteceu e o resultado é esse cenário que vemos agora. Por exemplo, o Carnaval cresceu bastante (neste ano, fomos cerca de 10 milhões!), atraindo gente de todas as orientações sexuais, inclusive os "viados". Então, os guetos não são mais apenas alguns pontos aqui e acolá, claro. Porque nem cabe. Outra coisa é que - apesar de às vezes parecer o contrário - evoluímos como sociedade e, hoje, casais homossexuais se sentem à vontade para circular demonstrando afeto. Há poucas décadas, isso era impensável.>
De forma que não "aumentou a quantidade de viado no mundo", como gente chata gosta de bradar. Duvido. Veja: ninguém "vira viado" porque agora pode circular de mãos dadas com outro homem ou porque o beijo entre eles está liberado. Eu mesma continuo hetero, apesar da liberdade de ser o que me der vontade. Pessoas homossexuais sempre estiveram por aí, só que escondidas. Agora, estão às claras. Tanto em ambientes gays como nos espaços predominantemente hétero e nos visivelmente "misturados" tipo a pipoca de Armandinho, a de Luis Caldas e o Bloco Os Mascarados onde, não sei como está agora, mas, antigamente - quando eu frequentava - todo mundo se beijava. Inclusive, logo atrás do trio elétrico era ponto oficial da heterossexualidade.>
(Na época, correu um boato de que Raí - aquele jogador - beijou foi muita mulher por ali. Porém nem vi, não beijei e não sei se é verdade. Mas uma conhecida minha disse que foi uma das sorteadas)>
Portanto - depois da minha leitura e da pesquisa de campo - o que tenho a dizer às mulheres que reclamam do "mapa da fome" é apenas "deixem de presepada". Sugiro que, para o próximo Carnaval, cheguem mais programadas. Principalmente, utilizem os critérios básicos para escolher espaços e atrações, se a intenção for desejar homens e por eles serem desejadas. Posso garantir que héteros continuam na pista e também com fome. Só que, certamente, não estão balançando leques coloridos, enfeitando camarotes famosos nem, muito menos, atrás das "divas" do Carnaval. Ou seja, é tudo questão de se orientar pra viver o que se quer. Sempre lembrando, claro, de deixar cada pessoa ser o que é. Em paz.>
Sempre lembrando, claro, de deixar cada pessoa ser o que é. Em paz.>