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Publicado em 3 de agosto de 2024 às 08:00
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Nesta semana, as redes sociais foram invadidas por falas veementes do pai de família, do personal trainer hetero top, do tio que sempre tem razão, enfim, de todos esses típicos tipos masculinos que você conhece bem. Estavam bastante indignados, enfurecidos, até. É que, na opinião deles, nós - mulheres cis - estamos correndo um perigo horrível chamado ‘homem batendo em mulher’. Sim, criatura, sente aí pra ler.
O que teria tocado tão fundo a alma dos nossos amigões? Será que, de uma hora pra outra, se deram conta dos números de feminicídios - praticados por homens cis - neste país? Se ligaram na quantidade de mulheres vítimas de violência doméstica? Ou, repentinamente, tomaram ciência da cultura do estupro que nos vulnerabiliza desde que nascemos?
Teriam os bem intencionados varões, finalmente, percebido a necessidade de rever esse diacho dessa 'macheza' toda doente na qual vivem imersos? ‘Serace’ tomaram vergonha na cara para a autocrítica necessária e urgente? Será que algum desses milagres aconteceu?
Não, amizade. Ainda não foi dessa vez. O que sensibilizou (indignou, enfureceu, desestabilizou) o homem tradicional brasileiro foi a presença de uma mulher que eles não entenderam, numa luta de boxe, na Olimpíada de Paris. Estou falando da atleta argelina Imane Khelif, que venceu uma luta contra a italiana Angela Carini, na quinta que passou. O homem tradicional brasileiro percebeu Imane como uma mulher trans e se perturbou da cabeça aos pés. Aí, pronto, você já deduz o rebucetê.
(Aqui, eu poderia passar a escrever sobre os motivos pelos quais o homem tradicional brasileiro se desestabiliza diante de mulheres trans. O porquê do ódio, inclusive. Mas, isso fica pra outro dia. Hoje, vamos por um caminho mais prático e superficial. Ainda que você possa, daí, pegar uma linha de raciocínio que tem a ver com tesões ‘proibidos’, fetiches e fascinação.)
Pois bem, quando a italiana tomou o primeiro (e único) murro da argelina, a comoção foi geral entre os queridões. “Meu deus, é uma mulher apanhando de um homem!”, diziam, estarrecidos, e as exclamações não pararam por aí. Choveram frases de perplexidade como “é covardia!” ou “não pode isso!” ou “um homem batendo em uma mulher é absurdo!”, entre outras que me deixaram, em parte, feliz. Pelo menos, mostraram que entenderam o conteúdo! Agora, só falta direcionar corretamente a indignação.
Veja bem: a boxeadora não é um homem. Também não é uma mulher trans e a querida Fernanda Tonhá - enfermeira e espertíssima - me explicou o seguinte: “Ela não é trans, ela tem Síndrome de Morris. Ela é XY e não tem receptor para testosterona, logo possui uma feminilização passiva. Nasce com vagina, testículos intrapélvicos, sem útero e sem ovários. O comitê tem critérios para localizar cada atleta na sua categoria. Isso inclui a quantificação hormonal”. Você entendeu direitinho? Eu, sim. Há um método, tá tudo bem.
Mesmo que não tivesse entendido, ou ainda que a atleta fosse mesmo uma mulher trans, eu seria capaz de perceber que aquela luta, lá em Paris, não se enquadra como um episódio do problema ‘homem agredindo mulher’ que vivemos, amplamente, por aqui. Para o qual, em minha humilde opinião, nossos queridos defensores - se quisessem ajudar - deveriam direcionar toda essa sede de justiça e boa intenção.
Porque, veja bem, se o COI tivesse errado na dosagem hormonal, mesmo que houvesse ali uma desproporcionalidade de força física entre as boxeadoras, a italiana tomou um murro, em ambiente controlado, na luta que escolheu praticar. De capacete e o escambau. E só perdeu uma luta, né? Mas tá vivinha da Silva, gozando de plena saúde e tal. Muito diferente de uma cacetada de mulheres que morrem apanhando de homens e eu nunca vi qualquer manifestação coletiva do nosso honrado homem tradicional.
Por quê? Exatamente porque a indignação deles não está na parte ‘homem batendo em mulher’ que isso aí, pelo jeito, eles acham normal. O incômodo, no caso, chama ‘transfobia’. A intenção das falas, do movimento, das manifestações, é desqualificar - chamando de homem - as mulheres que transicionaram. Ou seja, é apenas mais agressão, mais violência contra a mulher (trans) e a ideia de ‘proteger a mulher (cis)’ entra como adereço, só pra justificar. Quem é besta foi atrás.
Precisa se preocupar não, binho, e isso não é uma opinião pessoal. É porque não tem necessidade de proteger mulher cis de mulher trans. Nos esportes, há as regras de equidade. Fora deles, a gente convive com tranquilidade. Nunca fui assediada, agredida nem maltratada por qualquer uma delas. Estamos de boas e todas as estatísticas estão aí pra provar. Quem bate, estupra, mata, agride mulher (cis e trans) é, justamente, o danado do homem cis hetero e tradicional, que nunca soube lidar com desejos, frustrações e liberdades. Mas isso faz parte daquela outra conversa. Aqui, só quero terminar dizendo que é apenas ‘mais do mesmo’, onde você pode ter visto uma súbita ‘solidariedade’.
Flavia Azevedo é articulista do Correio, editora e mãe de Leo