O ‘São João tradicional’ morre e nasce todo ano

Cérebros costumam editar memórias, de forma que 'antes' sempre parece mais legal

Publicado em 16 de junho de 2024 às 05:00

Em 2023, achei triste a festa que chamam de São João, em Cruz das Almas. Aqueles palcos imensos, aquelas toneladas de equipamentos, aquela pirotecnia, o camarote, os exibidíssimos patrocinadores. O evento - grandioso, famoso, sucesso de público - me trouxe mais falta do que prazer. Até muito uma melancolia dentro do que senti simulacro da festa que já disse tanto de mim e, naquele dia, não tinha nada a ver.

Nenhuma outra qualidade de emoção, além dessa que tinha nomes como vazio, buraco, tédio, silêncio. Aquilo podia ser qualquer coisa, mas não São João. Pelo menos pra quem, como eu, nasceu e cresceu sentindo o cheiro das fumaças de junho, escutando o ruído das espadas, entendendo que privilegiado era quem tinha família no interior. São João era a casa dos meus pais para onde desciam as dezenas de adolescentes que eu chamava de amigos. A maniçoba no fogão. O friozinho com licor. Os forrós cantados com ‘erros’ de português, nos sítios mal iluminados de chãos cheios de lama.

Nada de junho é hiperbólico em minha memória. Diferente do Carnaval - minha paixão primeira, entre nossas festas - ‘junino’ é quase sinônimo de pequenininho, afetuoso, denguinho, simples, à vontade. O reencontro tabaréu com ‘de onde eu vim’ que se repetia a cada ano. Era quando eu convidava amigos urbaníssimos pra apresentar ao que, também, me estrutura, orgulha e faz feliz.

Amizades e amores aprofundados em essência, depois do mergulho em conversas intermináveis ao redor da mesa caprichosamente posta por minha mãe. Canjica, bolos de diversos tipos, milho, amendoim, queijo de cuia e licores em garrafas vestidinhas de chita. Eu mesma em jeans surrados e camisas velhas, porque tudo corria risco de uma fagulha queimar. São João nunca foi ‘de assistir’, na minha tradição. Nem jamais imaginaria que um dia pudesse vir a ser.

Era nisso que eu pensava, em pé, de frente pro palco, enquanto fazia cross-dressing de público para mais um show desinteressante. Não lembro mais quem cantava, mas sei que torcia para que os jovens que eu acompanhava dessem logo o evento por visto. Eu só queria voltar pra casa e, na noite seguinte, tentar de novo alguma coisa que, pra mim, fosse São João.

(Feira do Porto em Cachoeira? Uma guerra clandestina de espadas? Apenas acender a fogueira e ficar em casa? Veríamos.)

Ao mesmo tempo - na faixa dos 20 anos e vestidos de xadrezes - meu sobrinho e amigos se divertiam horrores com tudo aquilo que me parecia ‘não’. Aos 12 anos, felicíssimo, meu filho gostava daquele ‘junino’ sem cheiro de pólvora, sem fogueira, com milhares de pessoas olhando pro palco, depois de passar por portais decorados com coisas de plástico. Olhando ao redor, tive certeza de que só eu achava tudo ‘de mentirinha’, naquela imitação de ‘vila’ que fica na entrada da cidade. Para todas as outras pessoas, acho que era real.

Eu que considero tudo melhor hoje do que antes. Eu que acho ‘saudosista’ xingamento e que ‘camarão que dorme a onda leva’, ‘meu tempo é quando’, ‘o melhor lugar do mundo é aqui e agora’ e toda a disponibilidade da minha alma para o novo que sempre vem não foram suficientes pra achar graça ali, naquela festa que cometia o pecado de não ser ‘tradicional’. Já estava quase me sentindo naquele péssimo sentido de ‘velha’ (essa gente que vive a repetir ‘no meu tempo era melhor’) quando olhei pros meninos e peguei uma chave novinha de interpretação.

Tanto meu filho quanto meu sobrinho e os amigos do meu sobrinho estavam ali justamente criando memórias juninas inaugurais. Que não se pareceriam com as minhas, mas as minhas também não se parecem com as dos meus pais. No futuro, os portais enfeitados com plástico, a área do estacionamento da festa, as barracas de hambúguer e os shows imensos serão o ‘no meu tempo era melhor’ dos jovens senhores que se tornarão. Foi isso que entendi e parei de brigar.

Eu não sei mais onde se encontra o ‘São João tradicional’. Eu não sei onde se acha o passado, a não ser em memórias e imitações. Não entendo por que a gente precisaria encontrar. Também não sei se hoje é ‘melhor’ ou ‘pior’ e gosto sempre de lembrar que cérebros costumam editar memórias, de forma que 'antes' sempre parece mais legal. Mesmo quando não foi. Em nenhum São João, por exemplo, eu caminhei de mãos dadas com meu filho de 13 anos e isso vai acontecer em poucos dias, o que é sensacional. No futuro, é disso que vou lembrar.

O ‘São João tradicional’ morre e nasce todo ano, sabe? Morreram as guerras de espadas e os porres imensos nas noites frias de outros tempos. Nem noite fria tem mais. Não ando mais ‘de galera’, há séculos. Já é muito tradicional a fogueira imensa que os vizinhos da frente fazem. E decidir para que cidade iremos, com quem e que horas. Conferir a programação dos palcos também já é quase tradicional e o licor já não desce tão bem quanto descia no passado. Vou de rum o cerveja mesmo, reinventada. É no movimento que as coisas permanecem. Nada é mais de verdade do que o que acontece hoje, saiba.

Flavia Azevedo é articulista do Correio, editora e mãe de Leo