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O ENEM transformou redação em ciência exata

Entendi o motivo pelo qual essa geração odeia escrever e escreve tão terrivelmente

  • Foto do(a) author(a) Flavia Azevedo
  • Flavia Azevedo

Publicado em 7 de outubro de 2023 às 08:00

Há uns meses, um adolescente muito próximo e querido precisava de ajuda no desenvolvimento da habilidade de escrita a ser testada pelo ENEM. Certa de que sei escrever (e com a lembrança de excelentes notas em alguns vestibulares), me ofereci para dar “aulas” pra ele. Não seria uma relação profissional, mas de afeto, e as aspas na palavra “aula” também se aplicam por outro motivo: minha proposta não era a tradicional transmissão vertical de conhecimento. Isso a professora da escola já fazia. Entre nós, pensei num exercício mais livre como complemento, enriquecimento de tudo aquilo que acho que uma redação precisa.

Quando a pessoa está bem alfabetizada no idioma, domina o objeto e sente prazer escrevendo, consegue escrever. Pode não ser genial, maravilhoso ou poético - se não for o talento do vivente - mas a criatura se expressa e é isso que importa, no início. Então, no caso do meu “aluno”, eu só precisava me certificar de que ele estava bem alfabetizado, discutir temas contemporâneos de áreas recorrentes no ENEM e, principalmente, despertar nele o mais absoluto tesão por fazer com que palavras escritas uma ao lado da outra digam do que ele está pensando. Como o objetivo imediato era o exame, trabalharíamos o formato “dissertativo-argumentativo”, que tem muitas maneiras de ser construído.

Escrever é a atividade que acho mais fácil e divertida entre todas as que conheço. Não vejo mistério nem dificuldade e não via nem quando fiz os vestibulares, no século passado. Pelo contrário, era a prova que menos me custava esforço. Aula de redação era hora de relaxar, produzir textos sempre foi delicioso pra mim. Talvez justamente por isso eu tenha sido excelente aluna na matéria, por causa do prazer. Então, com essa “receita” (testada e aprovada) nas mãos e cheia de ótimas ideias fui para a primeira “aula”, toda feliz. Até tivemos alguns encontros, mas, em seguida, dei com os burros n’água porque a realidade me reprovou, infelizmente.

O ENEM transformou redação em ciência exata, descobri. De um lado, cheguei com filmes, textos, discussões e exercícios criativos. A minha intenção era ajudar o garoto a pensar sobre o mundo e encontrar a força da própria voz na versão escrita. Um estilo, um jeito confortável, para ele, de escrever. Porém, do outro lado, meu “aluno” me apresentava o que seria cobrado dele. Eram números (de linhas, de parágrafos), uma sequência imutável de elementos, expressões que precisariam estar no texto, não importava qual fosse o assunto (“em primeira análise”, “em segunda análise”) e todo um conjunto de regras que, no fim das contas, resultam em “outrossim”, “destarte” e nesses textos horrorosos que tiram nota mil no ENEM. Como não sou boa em exatas, desistimos das “aulas”. Não deu certo de jeito nenhum.

Em relação ao meu “aluno”, pode ser que tire excelente nota, mas continuaremos sem saber como ele escreveria, caso a oportunidade fosse oferecida, se a ele fosse permitido pensar e escrever do jeito dele. No entanto, é possível até que cite Foucaut na prova, mesmo sem jamais ter lido uma linha. É que “ideias centrais” de pensadores são oferecidas, por professores, como "enfeites" que devem ser encaixados nos textos, assim como essas palavras cafonas e as tais “propostas de intervenção” que precisam, necessariamente, estar no final da redação. Por fim, o adolescente que tentei ajudar não aprendeu nada de “útil” comigo. Mas, com ele, eu entendi o motivo pelo qual essa geração odeia escrever e escreve tão terrivelmente.

Arrasada com minha descoberta, liguei para minha amiga que é uma professora foda de redação, que é corretora do ENEM, que é doutora, que defendeu a competência do INEP e que disse que, com a criação do ENEM, foi preciso uniformizar a correção das redações para que o processo fosse democrático em todo o país. Aí, o negócio mudou mesmo e não é mais como antigamente. Ela também me informou que os candidatos têm 40 minutos pra escrever o texto, que o dia das provas de “linguagens” é pesado, que não vê alternativa. Por outro lado, me confessou que nenhum professor de redação que ela conhece gosta mais de ensinar redação, justamente por esse engessamento. Que também eles acham tudo chatíssimo.

Na minha cabeça, uma "tese" piscava e eu nem disse a ela por inteiro, mas vai aqui: então, professores entediados fingem ensinar escrita, alunos entediados fingem que escrevem e corretores - provavelmente mais entediados ainda - fingem que estão lendo, enquanto apenas aplicam uma espécie de gabarito (eu já vi como é e fiquei besta). Concluo que, por incapacidade de democratizar o acesso ao desenvolvimento da escrita estabelecida como funcional para o ingresso no ensino superior, prejudicamos cérebros jovens, de norte a sul do Brasil. Isso é um crime. Estou exagerando? Eu não acho, não.

Pense comigo: se você trata o desenvolvimento de uma habilidade humana como “adestramento”, durante grande parte da vida escolar, terá como resultado no máximo, jovens adestrados para determinado “número”. Uma coisa é ser treinado para resolver problemas matemáticos, para responder questões de biologia, para atender às regras gramaticais. Beleza. Outra coisa bem diferente é o adestramento de um âmbito de expressão que é um dos caminhos mais importantes do pensamento. Você mexe no pensamento. No caso, limita drasticamente. O "método" me fez lembrar as antigas botas ortopédicas e se isso não é um escândalo, eu não sei o que seria.

Agora entendo os textos enfadonhos, principalmente de gente jovem que trabalha com textos. Já percebeu isso? Agora faz sentido o monocórdico, a falta de surpresa, o excesso de “respostas”. O andamento que dá sono, a superficialidade, as duplas de palavras que sempre estão juntas, o tédio da “sequência correta” que vira o modo de pensar da pessoa, até muito além do texto. Depois dessa, percebo o motivo pelo qual adolescentes têm sido tão desinteressantes, quando, antes, eram surpreendentes e provocativos. Não, a culpa não é apenas dos eletrônicos, ou esvaziaríamos a importância da educação formal. Escola sempre foi lugar de pensar, aprender a escrever era um negócio que mexia com a gente. Agora é só mesmo treino para ser, de forma organizada, (mais) medíocre.

“Proposta de intervenção”? Não tenho. Solução não me ocorre além da mesma que tanta gente já grita: democratizar o acesso a comida e educação libertadora, de qualidade, para todas as pessoas. Com prazer. Fazer ler, mas incluir todas as formas de acesso a conteúdos diversos. Deixar de caretice. Mostrar, na prática, que pensar é divertido. Depois é só ensinar a esses cérebros acordados, loucos por expressão, que escrever é vida. Que existem regras, mas elas devem estar a nosso serviço e não o contrário. Que há espaço pra manobras na escrita, que escrever é um belíssimo meio de comunicar quem somos, de ultrapassar fronteiras. Assim, quem não gostaria?

“Mas como corrige essas redações tão livres com justiça?”, você está se/me perguntando. Sei lá. Não é meu esse desafio. Quem estudou pra isso – e deveria saber pensar – que se vire e ache uma solução. De preferência, uma que não atrapalhe tanto o processo de formação dos humanos que precisarão pensar o futuro e solucionar novos problemas. Enquanto se acha um caminho, a redação do ENEM fica suspensa, meu voto é esse. O exame é um importante instrumento democrático, sabemos, mas é absurdo que parte do treinamento para ele emburreça. É preciso alfabetizar as pessoas - de todas as classes sociais - plenamente. Vai dar trabalho, mas é a única saída digna. Pelo menos é o que vejo daqui.

Flavia Azevedo é articulista do Correio, editora e mãe de Leo