O bloco As Muquiranas precisa prestar contas antes de desfilar

Seria muito interessante se tivéssemos acesso a números que provassem a realização das ações prometidas no ano passado

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  • Flavia Azevedo

Publicado em 3 de fevereiro de 2024 às 08:00

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Neste Carnaval, o As Muquiranas completa 59 anos de uma história repleta de abusos e violências, principalmente contra as mulheres que têm a infelicidade de cruzar com ele, durante a folia em Salvador. Essa não é apenas a minha opinião. Em 2023, por exemplo, a coisa foi tão feia que muitas pessoas se movimentaram em campanha online pelo fim da agremiação. O Ministério Público, por sua vez, pediu, à Polícia Civil, a investigação de um grupo de associados que foi filmado agredindo uma ‘foliã’. Imagens de outros tantos vandalizando equipamentos urbanos e importunando geral com ‘pistolas de água’ podem ser facilmente encontradas.

O absurdo já seria muito mesmo que ninguém soubesse de um detalhe: além da fama de ‘macho abusador’, o bloco também é conhecido por ter grande número de policiais associados. O ‘Muqui’ - como muitos deles se referem ao As Muquiranas – é, sabidamente, reduto de homens cis - e autoproclamados héteros - que, durante o Carnaval, trocam os sisudos uniformes de ‘mantenedores da ordem’ por trajes minúsculos de bailarinas, enfermeiras e outros clichês. Normal. A velha ideia de que mulher é fantasia e não precisa ser Freud pra explicar. Comum demais.

Nessa sopa de gosto horrível, minha cabeça até se distrai com um fato que é nuance, mas nunca deixei de reparar. Veja que, seja qual for o tema do ano, aqueles ‘héteros top’ se comportam como o que costumam chamar de ‘vagabundas’ em todos os outros dias. Quem é essa mulher que incorporam? De onde ela vem? Onde vive? Do que se alimenta na ‘vida normal’? Mas divago porque isso é só um negócio pra você, se quiser, também pensar. O que importa aqui é que o Carnaval chegou e o bloco já confirmou que sai. Desta vez, com usome tudo vestido de ‘deusas da África’. Tá, mas em que termos? O bloco As Muquiranas precisa prestar contas antes de desfilar.

As ‘pistolas de água’ - que, muitas vezes, eles faziam de penico e depois usavam para jogar urina nas pessoas -já foram proibidas. Tá. Mas a ‘pistola’ banida é a mensageira e não a mensagem. Na mão de gente normal, seria só brincadeira refrescante de jogar água em quem topasse. A violência daquele grupo de homens é que transforma o que toca em baixíssimo astral. Do que os defensores discordam, repetindo a surradíssima ideia do ‘caso isolado’. Também que ‘o bloco condena qualquer tipo de violência’. Ótimo, se é assim. Então, vamos aos fatos.

Precisamos saber se todos os associados filmados cometendo crimes, em 2023, foram julgados e condenados. Depois disso, expulsos e proibidos de voltar à agremiação. Outra coisa é que, também em 2023, numa reunião com o Ministério Público, a direção do bloco anunciou que todas as fantasias seriam numeradas a partir de 2024, justamente para facilitar a identificação dos ‘isolados’ meliantes. Isso se concretizou? Também foi afirmado, pela diretoria, que foliões que respondem a processos relacionados à Lei Maria da Penha não poderiam desfilar. Perfeito! Essa providência foi tomada?

Depois dessa peneira, quantos associados sobraram? Seria muito interessante se tivéssemos acesso a números que provassem a realização das ações prometidas no ano passado, quando não se falava em outro assunto, logo depois do Carnaval. Dados atualizados. Quantos homens foram expulsos do bloco e por que tipo de comportamento? Quantos acessos foram negados e por quais motivos? Que idades têm esses homens? Na linha do tempo, podemos perceber um aumento ou uma diminuição de violências cometidas pelos associados? A direção se preocupa desde quando com o tema?

Outra coisa: durante o ano que passou, que atividades foram desenvolvidas, com os associados, para a prevenção da violência contra a mulher? Essa também foi uma promessa. Como foram essas atividades? Quantas pessoas foram alcançadas, que profissionais foram envolvidos no processo? Que mulheres foram convidadas a falar, por exemplo? Como foi a receptividade dos homens, a adesão? Temos algum material em vídeo dessas ações? Que resultados a entidade já percebe no ‘clima’ da agremiação?

Três bandas puxam o bloco neste ano: La Fúria, Psirico e Parangolé. As escolhas são coerentes com a proposta de paz? Há algum compromisso de postura dessas bandas no que se refere ao comportamento em palco e seu consequente reflexo nos associados? Houve alguma reunião, alguma conversa, algum documento assinado, algo que buscasse um ajuste de comportamento que dê conta da situação delicada pela qual passa a agremiação? Que mensagem a voz do bloco – representada pelos vocalistas das bandas – trará para as ruas neste Carnaval?

Fiz uma busca cuidadosa e não encontrei nenhuma informação que responda a alguma dessas perguntas. Desde abril do ano passado, o silêncio é sepulcral. No mínimo, não há empenho em divulgar. Ou nada foi feito e eu adoraria (mesmo) estar enganada. Por enquanto, sigo observando a programação e fugindo do infeliz encontro com As Muquiranas, desde quando fui instruída assim, em priscas eras. Mesmo nos dias de transe, fugir da violência de homens. Principalmente, de certos ambientes onde tudo nos leva a crer que agredir mulher é ponto de convergência, diversão. Até justamente o gozo. Talvez exatamente parte importante do que chamam de ‘curtir o Carnaval’.

Flavia Azevedo é articulista do Correio, editora e mãe de Leo