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Flavia Azevedo
Publicado em 25 de março de 2025 às 09:11
Acho que a coisa mais difícil da entrar na vida adulta é encarar a responsabilidade inegociável que passamos a ter sobre nós mesmos. Essa é uma realidade tão perturbadora que muita gente envelhece ainda em choque e tentando terceirizar essa responsabilidade. Não conheço um adulto (e me incluo nisso) que não tenha derrapado no caminho. Em diferentes níveis, pelo menos eventualmente, todos nós tentamos nos desincumbir um pouquinho. >
A devoção desmedida a líderes (espirituais, políticos e afins), o apego ao lugar de “vítima”, o sucesso dos “coaches” (de tudo que se possa imaginar) e as bases de muitas das nossas relações são algumas provas disso. É cada vez mais raro encontrar alguém que consiga assumir “isso aconteceu por culpa minha”, inclusive porque as novas “terapias” gostam muito de nos deixar “confortáveis”, o que nem sempre é positivo. >
Na segunda fase, o jogo fica ainda mais difícil. É quando nos reproduzimos e – além de responsáveis por nós mesmos – passamos a ser responsáveis por outras pessoas. De acordo com a lei brasileira, pelo menos por 18 anos. Isso, para boa parte dos adultos, será a materialização da frase “não ter e ter que ter pra dar”, daquela música de Djavan. “Por isso que não tive/tenho filhos”, você pode estar pensando. Sinto informar, mas a responsabilidade permanece, independentemente de você ter filhos ou não. Pense comigo.>
Ninguém consegue viver longe de humanos em formação. Seja no trabalho, na vida familiar ou no círculo de amigos, crianças e adolescentes estarão lá. “Aí não é problema meu”, você retruca. É sim. Precisamente, porque eles crescem. Inclusive, se tornam chefes, presidentes da República e síndicos, por exemplo. Eventualmente, estupradores e assassinos. Então, cuidar da infância e da adolescência é questão de sobrevivência, ou seja, mais uma responsabilidade inescapável de adultos. Principalmente de pais, mães e poder público, claro. Depois deles, em níveis diferentes, de todos nós. >
É evidente que, se tantos fogem até das responsabilidades sobre si, não podemos esperar que cumpram pactos coletivos. Sim, fingir demência é sempre uma opção. Porém, as consequências nos alcançam e a minissérie “Adolescência” (Netflix) mostra exatamente isso, não sei se você percebeu. Entre outras coisas, a rejeição, a ignorância, a impaciência e, por fim, a incompetência dos personagens adultos - em relação aos adolescentes - me chamaram a atenção. Não é tão difícil perceber esse detalhe, os autores da série já afirmaram que houve essa intenção. Só que é sutil. Então, segue o desenho.>
A minissérie não culpa – explicitamente - ninguém pelo assassinato que o protagonista cometeu, aos 13 anos. Acho até que, por isso, seduz e desperta tanta paixão. Porque, num primeiro olhar, é bem possível o conforto da leitura oposta a essa intenção. Com certo esforço, dá pra concluir que “não podemos fazer nada” e “não é culpa nossa”. Mais ainda, que “cada um faz o que pode”, principalmente quando vemos o sofrimento de uma família que fez “o melhor possível”. Acontece que, em questões sérias, o “melhor possível” precisa ser, minimamente, “suficiente”. Na ficção, não foi. Conforme sabemos, na vida real também não tem sido.>
O “melhor possível” da minissérie é composto por uma investigadora que tem “nojo” do ambiente escolar, um policial que não tem intimidade com o próprio filho e uma diretora de escola ignorante dos assuntos que interessam aos alunos. Mais um pouquinho e você encontra uma psicopedagoga que não consegue acolher uma aluna que acabou de ter a melhor amiga assassinada, uma vizinhança que não é capaz de lidar com um grupo de adolescentes que cometem pequenos delitos e uma escola na qual alunos e professores se tratam aos gritos. Note, também, que o “mundo cão do ensino médio” parece perfeitamente admissível. >
Observe um pai violento, uma mãe amedrontada e uma filha deslocada no próprio núcleo familiar. Veja que, provavelmente, você digeriu essa família disfuncional como se fosse apenas “comum, mediana e simples”, se assustou com o “grande ato” do menino e “perdoou” o pai e a mãe porque eles fizeram “o melhor que podiam”, dentro de uma vida – assim como as nossas - cheia de atribuições. Na minissérie, ainda há outros elementos que compõem o ambiente hostil que construímos para adolescentes fazendo o “melhor possível”. Acho um exercício interessante assistir com esse olhar específico e também reparando que TODOS os personagens adolescentes dão sinais de que desejam, desesperadamente, ser validados e acolhidos pelos adultos das próprias vidas.>
(Alguns verbalizam isso: o próprio Jamie e a amiga de Katie, por exemplo.)>
Isso porque, ao ler e escutar comentários sobre “Adolescência”, ainda não encontrei mea-culpa, ou seja, ninguém parece ter se visto como parte desse ambiente hostil. As análises dão aos “perigos da internet”, ao “significado dos emojis” e à própria “geração Z” o protagonismo no problema. Também à “questão do bullying”, ao machismo, à “machosfera”, aos “incels”... cada pessoa aponta a questão mais distante de si, justamente para se eximir porque, assim, dói menos. Deve ser isso. Elementar. É o nosso jeitinho. Só que.>
Eu sei, é difícil criar gente e a maioria de nós faz mesmo o “melhor possível”. Mas, na prática, o mar não quer saber se nadamos “o melhor que podemos”, por exemplo. Se o “melhor possível” for ruim, a pessoa vai morrer afogada. Como falam os adolês, “independente, irmão!”. O que quero dizer é que responder ao problema apenas lamentando, estudando “o mundo secreto dos jovens” ou evocando “a vida corrida”, “o sistema”, “a solidão materna” e todas as outras questões que vivemos - como ato máximo de implicação - chega a ser ridículo e não muda o fato de que temos sido coletivamente incompetentes, no lugar de “adultos da relação”. Resultado é que eles se mudaram para um mundo que não conhecemos onde, agora, estão matando e morrendo. Porque viver entre nós, ficou, no mínimo, chato. E a verdade é que eles têm razão. >
Na prática, repetir a ladainha de que eles são “difíceis”, afirmar que fedem, criticar tudo que mais gostam, empurrar a escola defasada goela abaixo, ridicularizar modos e costumes, negar a sexualidade da idade, achar que eles não sabem nada, não considerar a opinião deles, repelir questionamentos naturais e, por fim, chama-los de “aBorrescentes”, nos torna antagonistas e não os aliados que precisamos ser. Bote qualquer outro grupo social no lugar deles e veja que dispensamos um tratamento inadmissível a quem acaba de chegar por aqui. Podemos chamar isso de violência, inclusive. Cotidiana, permanente e naturalizada até como “piada”.>
(Por exemplo, talvez, muita gente não conheça a linguagem dos emojis porque já começou a criticar quando eles tiraram as vogais das palavras, nas conversas pelo zap. Se ligue.) >
Dito isso, você prestou atenção no que a mãe de Jamie falou pro marido, no último episódio? “Seria bom aceitar que talvez devêssemos ter feito mais (por Jamie)” e essa frase, pra mim, resume o recado da minissérie inteira. Precisamente, porque o plural não inclui apenas ela e o pai do menino. É mais abrangente e nos entrega as lentes com as quais podemos olhar para quase todos os outros personagens adultos da trama. Depois disso, para nós mesmos. “É sobre”, para usar mais uma gíria adolescente. >
É bom assumir nossa culpa, entender que erramos feio e aceitar que precisamos fazer MUITO mais por eles. Pra começar, entrar nos quartos, abrir janelas (em nós, principalmente) e fazer convites melhores do que esses que eles têm recebido. A partir daí, é reconstruir a hierarquia afetuosa INDISPENSÁVEL e voltar a ocupar o lugar de onde nunca deveríamos ter saído: o de RESPONSÁVEIS por eles. Lembra? Vida adulta, companheiro. >