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Flavia Azevedo
Publicado em 12 de março de 2025 às 20:46
Como todos nós sabemos, antes de aparecerem publicamente, os movimentos acontecem nos bastidores. Dito isto, acho grave que, de uns tempos pra cá, pessoas progressistas e libertárias - ou seja, gente que passou a vida defendendo a equidade entre humanos - faça constantes queixas sobre os rumos do movimento LGBTQIAPN+ . Sinal de maior gravidade é que muitas dessas pessoas fazem parte da sigla, são socialmente atuantes e colaboram na construção de políticas estruturalmente identitárias. Quer dizer, não estou falando dos “conservadores” que sempre defenderam o “só existe homem e mulher” e são eternos fãs da heteronormatividade. >
Também não falo dos “progressistas da Shopee” que se colocam, há tempos, reticentes em relação às estratégias para afirmação dos múltiplos gêneros e sexualidades. Estou falando sobre fortes aliados. Pessoas que têm procurado espaços privados e seguros para falar o que pensam por medo de linchamento público e vinganças judicializadas. É gente comum temendo que qualquer questionamento seja resumido a “homofobia”, “transfobia” e similares. Empregos e carreiras estão em jogo, assim como casamentos e círculos de amizades. Entendo o receio, mas é saudável que todo mundo possa falar. Vamos analisar o caso?>
A crise é interna, mas transborda para muitos espaços e várias pessoas apontam o mesmo personagem de sempre como responsável. Ele mesmo, o homem cis (aquele que nasceu e permanece em corpo masculino) e sua conhecida obsessão por dominar, subjugar e “se dar bem”. Outra vez, à custa de mulheres, sejam elas trans ou cis. Eis que, depois de invadirem a Lei Maria da Penha, agora vemos homens cis protagonizando outras violências sob a proteção da sigla. Como resultado, a banalização de lutas, a ameaça a conquistas e o afastamento de aliados da população LGBTQIAPN+. Quer exemplos? Vou dar.>
Aqui no Brasil, o fato de a pessoa se declarar transexual (em qualquer das muitas variações) garante o direito de acessar espaços legitimamente reservados a essa parcela da população. Isso quer dizer que se eu, mulher cis, declarar que sou um homens trans, estou automaticamente incluída em toda uma rede de proteção, independentemente da minha aparência, sem precisar provar nada ou enfrentar discussões. Sim, é uma inconsistência da lei, eu acho. Uma prerrogativa altamente discutível e outros países já encontraram soluções mais justas para a questão.>
“Acontece que mulher não faz isso, Flavinha”, foi o que comentou meu amigo (um homem trans e militante), quando ilustrei nossa conversa com essa situação hipotética tão distante de mim. Em seguida, completou: “pode pesquisar, quem frauda é o homem cis”. Ou seja, o cuidado que deveria proteger pessoas - evitando o constrangimento de precisarem mostrar laudos médicos, processos legais, fotos de infância e ter seus corpos julgados por terceiros - foi detectado como oportunidade perfeita para golpes e violências de tipos variados. Mas como isso acontece, na prática?>
No sistema prisional, por exemplo – onde também vale a autodeclaração - homens cis têm usado esse “recurso” para cumprirem suas penas em presídios femininos, já que o nível de segurança é mais baixo, as facções estão menos presentes e há mulheres, claro. Importante lembrar que também há bebês e crianças pequenas nesses espaços – filhos das presidiárias - e que são mulheres todas as funcionárias. Com tudo isso, você pode imaginar o resultado de abrir esses portões para homens de todo tipo – inclusive estupradores e pedófilos, claro – bastando que, para isso, eles se autodeclarem mulher trans ou não binários. >
Veja, eu não estou fantasiando nada. Há dados e processos na justiça. Por exemplo, de acordo com a Associação Mátria, em novembro de 2023, havia 19 pessoas do sexo masculino cumprindo pena na prisão feminina do Distrito Federal. Todas essas pessoas eram homens cis (aqueles que nasceram e permanecem em corpos masculinos) até serem presos. DEPOIS DISSO se declararam trans. Nenhuma delas passou por cirurgia de redesignação sexual e apenas uma fazia uso de hormônio sintético para desenvolvimento de características físicas femininas.>
Universidades também têm sido palco de conflitos envolvendo a “autodeclaração”. Entre muitos casos, recentemente, veio à tona a história de uma senhora que perdeu o emprego – e agora responde a processo – por ter chamado uma pessoa de “moço” e avisado que ela não deveria usar o banheiro feminino da Universidade Federal da Paraíba. Fotos de “Odara” (nome social da pessoa que se autodeclara trans) na época do acontecimento, mostram cabelos curtos, barba e demais características que aprendemos a ler como masculinas, em nossa estrutura social. De acordo com Odara, percebê-la como homem foi um ato de transfobia cometido pela faxineira, agora desempregada. >
Os exemplos são muitos e não quero lhe cansar. O que eu sei é que, enquanto o movimento LGBTQIAPN+ se cala diante do homem cis que sequestra a identidade (e a rede de proteção) trans, invade espaços femininos, violenta mulheres e semeia a discórdia do lado de cá, os “conservadores” nadam de braçada. Precisamente, cooptando os aliados da sigla que, diante de qualquer questionamento, são atacados e “cancelados”. Também disso, já vi alguns casos. Uma debandada previsível, você há de concordar. Precisamente, porque o outro lado oferece casa, comida e roupa lavada para humanos que ficam sozinhos, depois de serem execrados por, por exemplo, olhar uma imagem masculina e supor um homem no lugar de Odara, Maria ou qualquer outra mulher. Está tudo em risco, acredite. Um trabalho de décadas e bastante suado. Neste momento, o que vivemos é o clássico “cavar o próprio buraco”. Pode me interpretar como quiser. No futuro, vou me sentir aliviada por, entre tantas pessoas, também ter avisado.>