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Flavia Azevedo
Publicado em 8 de abril de 2025 às 11:17
O clima é tenso. Nas ultimas semanas, a insatisfação com a política pública para produção teatral saiu dos bastidores para ocupar redes sociais de artistas e produtores baianos. São muitas as vozes que se levantam em defesa da cena que já viveu melhores tempos na Bahia. Com 30 anos de carreira, Fernanda Paquelet é uma das principais, entre elas. Nesta entrevista exclusiva, a atriz e diretora faz análises, críticas e denúncias. Também aponta caminhos para sairmos do que chama de “momento muito triste”.>
Flavia Azevedo - O Brasil inteiro conheceu a “era de ouro” do teatro baiano, lá pelo início dos anos 2000. O que você acha que propiciou aquela efervescência, quando as casas viviam lotadas, havia muita produção e tantos profissionais da área viviam bem dos seus ofícios?>
Fernanda Paquelet - Essa “era de ouro”, especificamente (porque a gente já viveu outras “eras de ouro”), do final da década de 90 e anos 2000 até 2012, aconteceu porque aquele foi um momento de um maior investimento. Então, foi um momento onde a gente tinha um nascimento de festivais, tinha um boom do teatro-empresa, ou seja, empresas assistindo aos atores da Bahia, fazendo coisas dentro das próprias empresas e depois vendo eles no teatro. A gente tinha uma política nacional também sendo retomada de apoio às artes, então foi uma confluência de fatores.>
É indiscutível que, de lá pra cá, o “clima” mudou muito. Muitos teatros foram fechados, o descontentamento dos profissionais é visível e as queixas são generalizadas. Quais são elas, objetivamente? >
Eu dialogo com muita gente do meu setor e as queixas vêm, principalmente, pela descontinuidade da política pública. E é muito louco isso na área do governo do Estado, porque é o mesmo partido político e é totalmente descontinuada a ação. Inclusive, é totalmente descontinuado o perfil de pessoas que assumem a pasta da cultura. A gente precisa de uma Secretaria de Cultura que questione a governança, a gente precisa de uma secretaria mais ligada aos interesses da cultura e da arte e não aos interesses da política porque ela é transitória. >
Fernanda Paquelet
Atriz e diretoraHá os editais. Você tem concorrido? >
Eu tenho concorrido sim, e não tenho passado. Eu acabei de fazer um espetáculo - o Coriolano - que foi muito bem recebido pelo público. A gente fez duas temporadas e ninguém recebeu nada para fazer. Uma equipe de 70 pessoas! E nós não passamos pelo funil dos editais. Eu tenho assistido às peças que passaram, sabe? Não estou fazendo um juízo de valor dos espetáculos que passaram, mas é muito doido a gente pensar que ao ler um papel alguém vá imaginar o que vai acontecer a partir dali, que peça que vai ser criada.>
Além da sua experiência pessoal, como tem sido a percepção dos editais pela classe artística como um todo? >
Olha, tem alguns artistas que não estão se inscrevendo mais. Que desistiram e verbalizam isso, falam: “eu não concorro mais”, “quando eu vejo que abriu um edital começa a me dar taquicardia”. Então, eu acho que tem uma excelência de profissionais que não estão concorrendo, que não estão mais achando que isso seja um mecanismo, realmente, de fomento. Os editais não atingem a grande maioria dos artistas profissionais. Não atingem mesmo.>
Estamos falando de uma política pública ineficaz? >
O princípio da política pública, para as artes, aqui na Bahia, é de fazer uma distribuição financeira para os artistas e, para mim, isso é uma loucura. Porque imagine se a Secretaria de Educação fizesse uma política pública a partir da distribuição de dinheiro para professores e coordenadores, ou a Secretaria de Saúde para médicos e enfermeiros? Não funciona desse jeito. Então, os espetáculos que a gente produz é que têm que ser distribuídos. O Governo tem que garantir que esses espetáculos estejam sempre sendo apresentados. Isso é que vai fazer com que surjam mais teatros, com que surja mais público, com que surja continuidade. A gente não tem uma política nesse sentido.
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A iniciativa privada costumava participar intensamente – também via leis de incentivo – da sustentação financeira do teatro baiano. Como está, hoje, a relação com patrocinadores?>
Em relação às leis de incentivo, eu sou bem reticente. Primeiro que você tem que procurar empresas que pagam muito de imposto, pra você conseguir lá o percentual de investimento. Então, isso não dialoga com a gente. Não são pessoas que dialoguem com o teatro da Bahia. Comigo não dialogam e eu me insiro dentro do teatro da Bahia e conheço outras pessoas também e a gente não tem esse diálogo. >
Fernanda Paquelet
Atriz e diretoraVocê acha que haveria um meio de aproximar o teatro produzido na Bahia dessas empresas? >
Tem um monte de gente que é selecionado em edital, mas não é aprovado. Uma lista infinita de suplentes. E a gente tem uma lei de incentivo que não capta tudo, então eu acho que o próprio governo deveria pegar empresas e falar: “ó, tem uns espetáculos aqui que têm que ser patrocinados porque já foram avaliados por nós e são projetos bons e vocês vão fazer aqui esse patrocínio a partir de uma isenção de impostos”. Se não for feito desse jeito, a gente não vai chegar nessas empresas. Eu acho que não basta a lei de incentivo. O governo tem que fazer essa aproximação entre as empresas e os artistas, porque senão elas não nos dizem nada. Elas querem grandes eventos, elas querem as marcas delas em lugares grandões. É muito difícil conseguir um patrocínio para fazer espetáculo gratuito na periferia, por exemplo.>
De fato, não é uma característica do teatro atingir milhares de pessoas de uma só vez.>
Sim, porque o advento das artes é mais próximo, mais sutil. Para fazer isso, você tem que pensar em uma plateia pequena. Eu gosto de fazer teatro em teatros de 200 lugares, 300 no máximo. Então, para a gente atingir um público de cinco mil pessoas, a gente vai ter que ficar muito tempo em cartaz. Isso não chama muita atenção. Não tem esse boom midiático. Não é um evento. Não é uma coisa que acontece de vez em quando. É continuado, é as pessoas saberem que naquele lugar ali, no dia que elas quiserem ir, elas vão lá e vão ter alguma coisa para assistir.>
Fernanda Paquelet
Atriz e diretoraOutro fenômeno desses últimos tempos é que ir ao teatro – um programa que era bem popular na Bahia – sumiu da agenda da maioria das pessoas. Então, os espetáculos também sofrem com falta de público?>
Olha, a gente tem público de teatro, a gente tem pessoas que gostam de teatro, mas a gente não tem uma agenda cultural. Eu, por exemplo, sou da área da administração, fiz o doutorado em administração, tenho uma relação com a escola de administração da UFBA. Os professores de lá, que são meus amigos, que me conhecem, quando eles querem assistir a uma peça de teatro, ligam para mim. Ou seja, se você quiser ir ao teatro, você tem que ir no Instagram, você tem que conhecer um grupo, você tem que conhecer um teatro, você tem que procurar, enfim, não é convidativo, digamos assim.>
E divulgar individualmente acaba não cabendo no orçamento? >
Nós não temos um incentivo de divulgação. Então, quando você faz um espetáculo, você tem que gastar uma grana de divulgação, então você deixa de pagar as pessoas para poder divulgar. Mas a gente sabe que só fazer um cartaz não adianta, você tem que ter pelo menos três produtos de divulgação, mas não tem dinheiro para fazer isso. É tudo tão doido, sabe? O pouco dinheiro que você tem não é para investir nas pessoas, é para investir numa estrutura que não é das artes, é da publicidade ou é do comércio. Porque você compra tecido, você compra material, você constrói coisas. Não faz sentido você entrar num teatro que não te ajuda a divulgar. Você que tem que divulgar, você que tem que confeccionar o banner, você que tem que fazer tudo, você ainda tem que pagar pauta, você tem que pagar hora extra. Até na Sala do Coro (do Teatro Castro Alves)! Teatros públicos cobram pauta!>
Em outros momentos, já ficou provado que a Bahia sabe escrever, encenar, dirigir, iluminar, cenografar, musicar e produzir com excelência. Onde estão esses profissionais agora que o setor encolheu?>
Os profissionais das artes estão em outras áreas. O audiovisual absorveu grande parte, a educação também absorveu grande parte. E muitos desistiram mesmo, sabe? Estão trabalhando em outras coisas, entraram no comércio, entraram em outras áreas do conhecimento. Tem uma galera que eu conheço que foi pra área de saúde, tá fazendo outra faculdade. Então, a gente investiu muito numa galera e essa galera tá fazendo outras atividades agora, porque estão tristes. Estão desgastados, estão sem incentivo. Essa falta de investimento é facilmente percebida pelo Observatório de Economia Criativa da Bahia (OBEC), que fez um levantamento, e a Bahia nos últimos 10 anos só diminuiu o investimento. Hoje a Bahia tem em funcionamento uma lei emergencial, quer dizer, uma lei emergencial - que era para ser algo a mais - é tudo que nós temos hoje.>
Muitas pessoas têm usado a expressão “desmonte”, para se referir ao processo pelo qual o teatro baiano tem passado. Você concorda com essa expressão? >
Sim, na verdade eu acho que essa palavra define muito mesmo o que a gente está vivendo. Veja, a lógica das artes não pode estar submetida à lógica da gestão pública, porque a gestão pública sempre pensa de quatro em quatro anos, só que se você for pensar a arte de quatro em quatro anos, você nunca vai ter um desenvolvimento dela, porque em quatro anos é muito pouco para qualquer coisa, para formação de artista, para formação de público. A arte precisa de continuidade, ela precisa de constância. Se você tem uma estrutura que de quatro em quatro anos começa tudo de novo, desmonta, obviamente que a atuação das pessoas fica prejudicada, a continuidade do trabalho fica prejudicada, você não consegue uma boa formação, a formação é descontinuada.>
De que maneira os profissionais estão se organizando e quais são as reivindicações? >
Eu faço parte de grupos de artistas profissionais que vêm tentando se organizar. Mas existe uma cobrança muito grande de que a classe se organize para as coisas andarem e eu acho isso uma maldade absurda. Tanto do poder público - que já falou, algumas vezes, que a gente tem uma classe desorganizada -, quanto da própria classe, um cobrando o outro. No entanto, em relação ao Estado, a gente tem uma lei orgânica aprovada, eu acho que se a lei orgânica estivesse funcionando, estava todo mundo trabalhando, a gente não ia precisar se organizar para reivindicar direitos que já estão garantidos. Se a gente tiver uma distribuição da produção artística do Estado, a gente já tem nossos direitos garantidos, a gente não precisa se reunir para fazer isso. A gente é acostumado a se reunir por outros motivos. A gente se reúne para poder criar trabalhos, para poder se apresentar, para poder fazer as coisas. A gente não pode dizer que as coisas não estão indo bem porque os artistas estão desorganizados, como isso é muito dito.
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Fernanda Paquelet
Atriz e diretoraPra terminar, como você define, em poucas palavras, o momento que vivemos?>
A arte é sempre uma expressão do seu tempo. Se a gente anula a existência de uma política para as artes, a gente anula os registros de uma época, a gente anula a percepção de um momento histórico. É isso que está acontecendo. A sensação que eu tenho é que a ausência de política pública tem um objetivo de criar uma história fictícia de que aqui está tudo muito bem. Então, a partir da anulação das pessoas, a gente cria um estado de não estar acontecendo nada, de estar tudo super tranquilo. E, na verdade, não está. Está todo mundo super desgastado, exausto, triste, desistindo, abrindo mão de carreiras. É um momento muito triste.>
QUEM É: Fernanda Paquelet é atriz e diretora de teatro, mestre em teatro, doutora em administração, Prêmio Braskem Melhor Atriz 2006, Prêmio Braskem Melhor Infanto-Juvenil 2013 e fundadora do Coletivo4, com sede no Forte do Barbalho. Também faz parte do Conselho de Cultura do Município (Salvador). >