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É pra votar em quem?

No dia de escolher prefeito e vereador, o que sempre valeu foi a opinião de Painho e Mainha

  • Foto do(a) author(a) Flavia Azevedo
  • Flavia Azevedo

Publicado em 6 de outubro de 2024 às 08:00

Você sabe que é pra procurar saber partido e propostas, ver o passado do candidato, investigar a ficha, pensar em representatividade e todas as outras providências que tomamos antes de escolher os números que vamos confirmar nas urnas. Tá ligado, sobretudo, que jamais - em tempo algum! - deve votar pela cabeça dos outros. Que o voto é secreto, pessoal e intransferível, confere? Olha, mais ou menos.

Se você nasceu - e/ou ‘se criou’ - no interior e depois migrou para as grandes cidades, é possível que tenha deixado seu título onde as filas são menores e não há engarrafamentos. Lá onde o endereço do documento funciona como um lembrete de ancestralidade e, principalmente, é desculpa para ótimas e ‘obrigatórias’ farras. Aí, conhecendo esse cenário, vai concordar que - nas eleições municipais - há limites para o tal “voto consciente”.

Esse “umbigo enterrado no interior” é o meu caso e de um monte de gente. Por isso que dia de eleição, nas cidades pequenas, é coisa animada. Aquilo tem jeito de Natal expresso ou pop up de São João. Tipo uma amostra grátis dessas festas em que o que há de mais divertido é pegar estrada pra passar um tempo com a família de origem que permanece por lá, rever amigos, saber de fofocas sobre gente que não está nem em seu radar e, depois de poucas horas, relembrar os motivos pelos quais escolheu emigrar.

No meu caso, de uma pequena cidade do Recôncavo onde abraços, histórias, lençóis com cheirinho de alfazema, quintais, maniçobas, vatapás (feitos de farinha) e frutas tiradas dos pés continuam me esperando. Onde, a cada quatro anos, junto com tudo isso, também me aguarda a política local. O que significa que, em dia de eleição, sempre estiveram lá os tais santinhos. Muitas vezes, até camisas de candidatos. Sim, já vesti e ainda bem que não existiam redes sociais naquele tempo. Ou, pelo menos, ninguém ligava.

Nessas ocasiões, não me cobre coerência, porque é como se diz: manda quem pode, obedece quem tem juízo. Isso quer dizer que - muito acima das inegociáveis convicções que norteiam minhas escolhas de presidentes, governadores e deputados - no dia de votar em prefeito e vereador, o que sempre valeu foi a opinião de Painho e Mainha.

(Quem mora no lugar é que sabe ‘quem é quem’.)

(Em interior, na prática, não existe plano de governo nem partido. O que há é gente pedindo emprego de vereador e prefeito.)

Candidatos, inclusive, contam com essa característica pitoresca do eleitor interiorano. Se nas metrópoles cada cabeça é um mundo - e eles trabalham com a ideia de nicho - nas pequenas, cidades ‘família’ significa um conjunto de eleitores. Por isso, famílias numerosas ‘valem’ quase tanto quanto aquelas que formam opinião.

Por isso, a disputa por colocar a propaganda do candidato em certas casas é acirrada. Por isso, nas internas, candidatos se perguntam ‘os filhos votam aqui?’, antes decidir o quanto de atenção vão investir em alguém. Porque o ‘voto de cabresto afetivo’ é uma instituição, uma certeza, uma realidade indiscutível.

Famílias maiores, cientes do próprio ‘capital político’, têm uma prática engraçadíssima. Pra ter certeza de que ficarão bem em qualquer desfecho (e garantir as benesses que, muitas vezes, almejam), ‘dividem os votos’ dos parentes e anunciam isso. Por exemplo, metade da família vota em cada um dos candidatos ‘mais fortes’ a prefeito. Dois ou três vereadores também entram na partilha, e os adesivos vão todos para a fachada da casa ‘democrática e includente’.

Outra coisa engraçada é que em toda eleição municipal, a cidade passa a ter mais candidato a vereador do que gente. Pouco antes da campanha, você vê a simpatia crescendo na pessoa e deduz ‘é candidato’, com 100% de chances de acerto. É o problema do desemprego. Além dos cargos na prefeitura, a Câmara é disputada a murros, tapas e gritos.

Então, quem se acha ‘popular’, por qualquer motivo, se candidata, assim, como uma aposta de melhoria para a própria vida. Aí, sem proposta, sem nada - sem nem saber a função do cargo que pleiteia - começa a andar a feira toda, todos os dias. No outro turno, é de porta em porta pedindo voto e tomando cafezinho.

Quando chegam os resultados, a galhofa com os perdedores toma conta das calçadas e janelas. ‘Crendeuspai, só teve 37 votos’, ‘Oxe, não disse que tava eleito?’, ‘meninaaaa, quem diria?’... Toda vez as frases são as mesmas e a conclusão de sempre: ‘o povo daqui é ingrato, quem quiser que confie’ seguida por juramentos do ‘traído’, que afirma ‘não quero mais saber de política’. Quatro anos depois, o candidato tá, de novo, inscrito.

Igual a mim que, toda vez, digo que vou transferir meu título. Só que, toda vez, depois eu lembro de tanta fofoca boa, de tantos domingos divertidos. Aí, volto a exercer o meu ‘voto de cabresto afetivo’. Tranquila, feliz e achando até simpático mais esse sentido para a palavra ‘família’.

Flavia Azevedo é articulista do Correio, editora e mãe de Leo