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Flavia Azevedo
Publicado em 2 de novembro de 2024 às 08:00
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Provavelmente, você está acompanhando a história de Bruno Gonçalves Cabral, o candidato que – depois de uma liminar – conseguiu tomar posse, como cotista, no Tribunal de Contas do Estado da Bahia. É possível que você olhe para a foto de Bruno e ache muita desonestidade ele se candidatar à vaga reservada para “negros”.
Talvez, você concorde com a “banca de heteroidentificação” que afirma, com veemência, que Bruno não é “negro” o suficiente pra assumir vaga nenhuma, porque o cabelo dele é liso. Pois eu acho que Bruno deveria, além de lutar pela vaga, também processar meio mundo de gente pela exposição e acusação de fraude que vem sofrendo. Explico: ele jamais se declarou negro pra entrar no TCE-BA.
Bruno é pardo e quem sustenta essa afirmação (dele e minha) é o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. O que o IBGE pergunta ao brasileiro, a cada recenseamento, é se ele se considera uma pessoa preta, parda, branca, amarela ou indígena. Não há subcategorias tipo “pardo de cabelo 3A” ou “pardo de olhos azuis” ou “pardo mais clarinho”. No último Censo, realizado em 2022, 45% da população brasileira se declarou como é: parda. Apenas.
O termo “pardo” foi incorporado como categoria no Censo em 1950. O IBGE considera pardo quem é resultante da mistura de duas ou mais cores ou raças, incluindo branca, preta e indígena. Ou seja, mistura de preto com indígena é pardo, mistura de branco com preto é pardo, mistura de branco com indígena é pardo e mistura dos três é pardo também. Não há regras sobre proporções genéticas ou aparência física.
Agora, é o seguinte: quem botou “pardos” (45,3% da população brasileira) e “pretos” (10,2% da população brasileira) no mesmo grupo e chamou todo mundo de “negros” foi a Lei de Cotas e não Bruno ou eu. Com isso, 55,5% dos brasileiros são pessoas elegíveis para a política afirmativa. Porém, na prática, quem aplica a lei não concorda com o que ela é. Resultado, então, é essa situação de candidato ter aparência física julgada - eventualmente, ser linchado em praça pública - e não é possível que ninguém enxergue o absurdo disso.
Fui entrevistada no recenseamento e me declarei parda. Não porque “acho” que sou parda, mas porque sei que sou parda e, bem antes de responder à pergunta, já havia pesquisado o que “pardo” significa. Ao me declarar parda, não digo que sou negra, nem que sofro racismo na Bahia. Mesmo assim, se quiser, posso acionar as Cotas Raciais porque a categoria “pardos” existe e é contemplada pela política afirmativa. Simples.
Sim, o Brasil é um país racista em relação a pessoas pretas, características físicas pretas e cultura preta. Isso impacta a vida da população preta de forma brutal. Quanto mais visíveis são as características físicas da ascendência preta, maior o estrago do racismo na vida do indivíduo. A parte da Lei de Cotas Raciais que contempla “negros” existe justamente para amenizar esse impacto negativo nas pessoas que trazem, no corpo, essas características, em níveis significativos.
Entendo perfeitamente a lógica dessa política que é justa, necessária e traz resultados belíssimos. Sou a favor de políticas afirmativas. O que não consigo entender é que se aplique a lei de forma diferente da que está escrita e com interpretação de raça divergente da que, oficialmente, o IBGE afirma em todos os cantos do país. Isso gera situações que acabam por expor todo um esforço pela igualdade racial ao ridículo.
(Lembre que a função do IBGE é, exatamente, fornecer dados oficiais para que o país possa tomar decisões econômicas, sociais e políticas.)
Não é sério, não é admissível, não sei nem se está dentro dos limites da lei convocar pessoas para que se reúnam - diante de um candidato à cota - e passem a julgar curvaturas de cabelos, espessuras de lábios e tons de peles, por exemplo. Também que se conclua a "insuficiência" de características físicas de alguém para o que quer que seja. É humilhante e constrangedor para o candidato. É patético e descredibiliza um processo que deveria ter todo o nosso respeito.
Também é ineficaz porque sempre trará resultados discutíveis. Pessoas pardas não têm um fenótipo característico e não deixam de ser pardas por isso. Podemos ter as mais diversas aparências físicas e continuamos sendo pardos, independentemente da opinião de terceiros. Conforme você sabe, somos diversos inclusive quando parentes próximos, dentro da mesma família. Essa aparência – que pode ser tanta coisa – é, justamente, a cara do Brasil.
Conheça Beatriz Bueno e o conceito de “parditude”, esse termo que se refere à identidade e à cultura parda no Brasil. Nem brancos nem pretos, mas brancos e pretos e indígenas, tudo junto aqui. Múltiplo pertencimento, enorme leque de ancestralidades, convergência de traços de diferentes povos. Pardo não é “nem isso nem aquilo”. Ao contrário, é isso E aquilo. É congruência, foz de etnias. Identidade plena.
Pra entender mais um pouco, conheça também o coletivo Identidad Marrón, que trata do mesmo tema, agora na Argentina. Onde, do mesmo modo, há pardos tomando consciência de si e se movimentando para ocupar o espaço social que nos é devido. Em nosso caso, também nas Cotas Raciais? Neste momento sim, porque é o que está na lei e vale o escrito. No futuro, não sabemos. Acho que a política precisa mudar, se atualizar, considerando mais essa crescente complexidade do povo brasileiro.
Ou seja, senta que lá vem conversa de bar, matéria em jornal, palestra, seminário, congresso, livro, pesquisa, opiniões, militâncias, contras, a favor e muito “não tenho nada com isso”. Porque pardo, além de existir, é maioria. Então, evidentemente, aprender a pensar pardo é inevitável e urgente, ou vamos tropeçar nesse novo e instigante desafio coletivo.
(Iôtra, viu? Pardo, ainda por cima, é lindo!)
Flavia Azevedo é articulista do Correio, editora e mãe de Leo