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Flavia Azevedo
Publicado em 23 de dezembro de 2023 às 11:00
Confesso que não me lembro da última vez - antes dessa comemoração dos 30 anos de carreira, no Maraca - em que assisti a um show de Ivete. Talvez tenha sido na década passada, em evento da mesma efeméride, na Fonte Nova lotada. Ou a live do pijama, na pandemia. Fora isso, só ela passando no trio e eu dançando no chão e segue o Carnaval. Então, talvez não seja novidade a coisa que primeiro me fez apertar os olhos e prestar atenção na tevê, quarta passada. Mas pra mim é, e nunca ouvi ninguém comentar. >
O show foi massa, ela é uma profissional competente. Mas meu impacto mesmo foi quando começaram a aparecer barrigas, culotes, celulites, flacidezes e todo tipo de “imperfeições” nos corpos de bailarinos e bailarinas. No palco! Vi duas gordas grandes, além das “falsas magras” com gordurinhas dobrando nas costas, em camadas. Tinha homem com barriga enorme também, junto com pessoas magras e outras de músculos bem definidos. Todo mundo junto, dançando, como se fosse a coisa mais corriqueira. Não é.>
Não vou fingir costume e acho que devemos falar sobre as bailarinas gordas de Ivete Sangalo. Sim, criatura. Eu conheço Thais Carla e a história dela com Anitta. Também já vi essa “fuga de padrão” em outros palcos. Não estou dizendo que Ivete tenha sido a primeira fada sensata a pensar, de forma muito espontânea, na questão. Não fantasio que “mainha” acordou um dia, deu bom dia a Daniel e disse “aí, pivete, tive uma ideia genial de botar gordo no palco, vai ficar difudê, vou mandar contratar”. Foi assim não, binho. Pode confiar.>
O fluxo é justamente o contrário. Aquelas pessoas estão ali porque ficaram inevitáveis. Mesmo no palco de Ivete Sangalo. Veja bem que se aquela diversidade de corpos chegou a um lugar tão absolutamente convencional (Vamos evitar “mainstream”? Vamos!) - e de público igualmente convencional - é porque, como disse minha amiga, “o povo tá aprendendo”. Ou, em bom baianês, “toma, sacana!”. O Maracanã lotado, a transmissão ao vivo, a grandiosidade do espetáculo, a situação demandou todos os cuidados. Contemplar diversidade, hoje, é o mínimo necessário.>
Talvez, você já esteja se tremendo pra dar “sua opinião”. Se o nervoso for grande, sei o que você está pensando. Provavelmente, que gente gorda “é feia”, que “não é saudável”, que “obesidade é doença”. Você tem o direito de pensar assim? Claro que tem. Aí, você tira a bunda do sofá e vai dar uma corrida ou começar a low carb porque já passou dos 18 anos e sabe – suponho - que a sua opinião sobre corpos serve pro seu corpo. Pra mais nada. Tá, serve também para quem pedir a sua opinião. No máximo. Falou mais do que isso, vai passar vergonha, nem sinto informar.>
Obesidade tendo CID ou não, eu querendo ser gorda ou magra, você achando bonito ou feio, estamos colhendo frutos. Aquele palco cheio de gente com formas variadas não aconteceu por milagre ou bondade. Aquela imagem não significa que “mainha é gente boa pacaraio”. Não estou dizendo que ela não seja, mas aquelas pessoas estão ocupando o espaço convencional porque conquistaram novos olhares no lugar comum. Porque, aos poucos, de degredados passaram a imprescindíveis. Sem eles, não dá mais. Qualquer consultor minimamente experiente, num primeiro contato, já vai logo avisar.>
(Em qualquer reunião que se preze, os mais atentos costumam alertar: "gente, tá faltando negro", "galera, tem menos mulher do que homem", "pessoal, não vi gordo nenhum" e por aí vai...)>
Aquele grupo de bailarinos foi selecionado por cada mulher chamada de “neurótica” ou “mal-amada” por se afirmar sujeito e não objeto de divertimento alheio. Por exemplo. Também por gordos e gordas que exigiram humanidade, mesmo levando tanta porrada a cada pedido de respeito. Isso, para apenas falar do recorte “formato de corpos”, um dos segmentos de diversidade contemplados no evento. Ivete não é burra, percebe? O mercado não é, quero dizer. Ele vai sempre assimilar o que a gente exercer aqui de verdade. >
(Perceba, por exemplo, que Beyoncé não desembarcou na Bahia por acaso.) >
(Qual é o movimento, rumo ao mercado, da capital do estado mais negro do Brasil?)>
No episódio de hoje, portanto, aprendemos que “padrão” não se constrói apenas de cima pra baixo. Que não é mais assim. Que com a expansão contemporânea do que chamamos de “nosso meio”, com “nosso meio” passando a ser o mundo todo, os jeitos de cada um de nós vão compondo esse “padrão” onde, por fim, queremos que caibam todos (as/es/ix…). Assim, o que quer ser abrangente (como no caso de Ivete) tem, por imposição mercadológica, que incluir. Acho ótimo, pra mim tá bom assim. Gosto de ver resultados.>
(A única coisa que não entendi é por que Ivete - tão baiana - resolveu fazer essa festa no Rio.)>
Flavia Azevedo é articulista do Correio, editora e mãe de Leo>