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Flavia Azevedo
Publicado em 14 de março de 2025 às 13:58
Nos últimos dias, a notícia de que Câmara de Vereadores de Santo Amaro da Purificação aprovou que um terreno doado à Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) seja tomado de volta pela prefeitura da cidade, chamou a atenção de todos os que entendem a importância do ensino superior público, gratuito e de qualidade. Sabemos que a trajetória da UFRB – criada em 2005 – tem mudado a história das cidades do Recôncavo baiano nas quais se instala, além da vida de milhares de pessoas que recebem, na instituição, excelente formação em diversas áreas. >
A UFRB serve à comunidade local, atrai alunos de muitas partes do país e se conecta com o mundo por meio de relevantes eventos, projetos, pesquisas, intercâmbios e outras tantas atividades. Também por isso, a universidade seduziu o Recôncavo e se tornou um dos seus patrimônios mais caros. Tanto que, em 2012, até antes de se instalar em Santo Amaro, recebeu, da prefeitura daquela cidade, um terreno de 60,3 mil m², em local privilegiado. Ali, deveria ser construído um novo campus, mas os recursos do Governo Federal nunca chegaram. Agora, a prefeitura tomou o terreno de volta e minha pergunta é: esse desfecho poderia ter sido evitado?>
No terreno - doado em 2012 – estão as ruínas da antiga Siderúrgica Fundição Tarzan. A transformação daquilo em um campus universitário demanda uma grande obra, orçada em R$45 milhões. Providências foram tomadas para que essa verba chegasse. A previsão era de que o centro acadêmico fosse construído por meio do Programa de Aceleração do Crescimento Cidades Históricas, que é uma linha do PAC, do Governo Federal. Em 2013, a UFRB se habilitou para a criação do Campus de Santo Amaro e do Centro de Cultura, Linguagens e Tecnologias Aplicadas (CECULT). Mas dez anos se passaram sem que o dinheiro fosse disponibilizado.>
Em 2023, surgiu uma nova oportunidade, quando o governo lançou outra versão do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), com previsão de investimentos de R$ 240 bilhões. Acontece que, nessa ocasião, foram priorizadas obras já iniciadas, que estavam paradas e o projeto de Santo Amaro, de novo, não foi contemplado. Quando perdeu esse segundo bonde, a universidade já tinha, há onze anos, a posse do tal terreno. Agora, em 2025 – ou seja, 13 anos depois - Santo Amaro decidiu doar a área para a construção de um supermercado. Diante da decisão, uma grande mobilização se anuncia e eu fico pensando que, talvez, seja tarde demais.>
A pergunta “como esse desfecho poderia ter sido evitado?” se desmembra em muitas outras. Por exemplo, nesses 13 anos - ciente da própria relevância e da importância de construir sede própria - enquanto aguardava a verba federal, a UFRB não conseguiu pensar em nenhuma alternativa para ocupação daquele espaço? É claro que arrecadar R$45 milhões não é uma coisa fácil, mas será que só a execução total do projeto garantiria a manutenção da posse do terreno longe da acusação de que ele “não estava sendo utilizado”? Será que a Câmara de Vereadores conseguiria aprovar a devolução daquela área se nela funcionasse um galpão com programação cultural, uma feira de produtos da agricultura familiar, um anfiteatro onde acontecessem seminários ou qualquer outra pequena estrutura - administrada pela UFRB - que depois pudesse ser incorporada ao projeto original? Quando a gente não tem dinheiro pra construir uma casa de vez, não é assim que faz?>
Será que as pessoas que se mobilizam agora, depois do leite derramado, não atenderiam ao chamado da UFRB, diante da iminente perda do terreno que estava explicitamente anunciada desde 2020, quando a matéria foi votada pela primeira vez, na Câmara? À época, os vereadores não aprovaram a implantação de uma indústria de produtos automotivos no local. Foram nove votos contra a doação do espaço para a indústria e cinco a favor. Isso não foi um alerta vermelho, um sinal suficientemente claro, um chamado à mobilização da comunidade? Esse fato não poderia ter sido bem divulgado e, com ele, espalhada a mensagem de que o campus de Santo Amaro precisava de atenção especial? Minimamente, outros campi da UFRB não se mobilizariam para ajudar na ocupação?>
Ainda antes disso, não poderiam ter feito nada? A gestão de Santo Amaro afirma que o acordo firmado em 2012 previa que a obra fosse realizada em quatro anos. Ao final desse prazo, percebendo que os recursos federais não chegavam, não ocorreu às lideranças da UFRB buscar nenhuma das tantas alternativas possíveis para acesso de recursos dentro de uma universidade? Profissionais que viajam o mundo inteiro com seus projetos, doutorados e pós-doutorados, não conseguiram ver, em nenhum país visitado, qualquer experiência bem-sucedida que pudesse ser replicada pela UFRB? Conhecedores de tantas universidades não tiveram a curiosidade de estudar as parcerias - tão comuns lá fora - entre poder público e iniciativa privada?>
Mesmo aqui no Brasil, não encontraram inspiração em outras universidades? Nem aqui na Bahia? Nem na UFBA (Universidade Federal da Bahia), por exemplo, que tem longo histórico de acesso a recursos em convênios com iniciativa privada, doações e emendas parlamentares? Recentemente, a universidade inaugurou o primeiro Planetário de Salvador, inteiramente construído e equipado com verba de doação, saiba. A Faculdade de Administração da mesma UFBA tem diversos convênios com instituições. A FACOM (Faculdade de Comunicação), neste momento, se sustenta com emendas parlamentares que, sim, geram polêmicas, mas resolvem questões graves. >
Da mesma maneira que trajetórias individuais de docentes e discentes podem ser trilhadas de muitas formas, as instituições de ensino federais têm grande liberdade para atuar dentro dos limites da legalidade. Apesar das críticas, as emendas parlamentares são instrumentos legítimos pelos quais recursos são destinados aos redutos eleitorais de deputados e senadores para obras e projetos. Esse dinheiro sai do orçamento do Governo Federal, ou seja, é de todos nós. Em mais de uma década, a UFRB não pensou em se organizar para atuar politicamente e conseguir construir um galpão que fosse, naquele terreno? Não há nenhum político egresso da UFRB? Nenhum aliado do ensino superior público, gratuito e de qualidade?>
Você pode até dar risada, mas veja: os Velloso foram solicitados? Pelo menos Caetano e Bethânia, que têm tanto dinheiro, são pessoas cultas e se declaram perdidamente apaixonados por Santo Amaro? A ideia não é descolada da realidade. A doação para a construção do Planetário veio de um ex-aluno da UFBA. Pessoa física. Esses artistas santamarenses de projeção mundial, não topariam destinar parte da bilheteria de qualquer show pra capinar o terreno, levantar um muro, botar um telhado, três banheiros e uma placa? Além deles, tantos artistas, tanta gente importante nascida e criada naquela cidade! A única alternativa dos gestores da UFRB era sentar e esperar a totalidade da verba ser depositada pelo Governo Federal? Se tentaram algumas dessas alternativas, nada deu certo? Sinceramente, me custa acreditar.>
“Mas a obrigação era do governo”, você está pensando aí. Principalmente, sim. Eu sei. Claro. Só que administrar uma instituição (ou uma casa, um negócio e nossas próprias vidas), significa trabalhar “com” e “apesar” do poder público, alternadamente, a depender do lugar, da época e do caso. Para isso, é preciso desejo e criatividade. “A luta apenas começou”, diz a UFRB, inconformada. Há toda uma mobilização para que a decisão da Câmara da Câmara de Vereadores seja revertida o que talvez possa acontecer, de fato. Nesse contexto, cabe uma última pergunta: caso o terreno seja retomado, qual é o plano para garantir a ocupação do espaço a curto e médio prazo? Isso porque continua incerta a chegada dos R$45 milhões necessários para o projeto ideal e apenas esperar por eles é uma estratégia que não parece ter funcionado. >