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É preciso dar um jeito, meu amigo

Nada deixou os pregadores do caos mais acuados que a proposta do fim da escala 6x1 de trabalho, apresentada por uma mulher transexual, a deputada Érica Hilton

  • Foto do(a) author(a) Rafson Ximenes
  • Rafson Ximenes

Publicado em 18 de novembro de 2024 às 06:23

Há épocas em que tudo parece ruir. As bases em que se organiza o mundo em que vivemos não oferecem perspectivas de que nossos anseios serão satisfeitos. Tudo muda rapidamente e as mudanças aterrorizam, especialmente quando envolvem a chegada de novos personagens, que não existiam ou não estavam em cena porque se escondiam com medo de nós.

Nos momentos de angústia, tendemos a nos comportar como torcedores após uma derrota. Queremos ouvir o comentarista irritado atacar jogadores, técnicos e dirigentes que não entendem, nem respeitam nossos sentimentos. Pode não fazer muito sentido o que ele diz. Aquela mesma equipe já nos deu muita alegria. Mas na hora da dor, não temos paciência para teorias. Qualquer explicação do treinador soa falsa e irritante. Queremos algo novo, mesmo que pior.

Nesse contexto, sempre surgem líderes para canalizar a revolta que sentimos e não entendemos. São hábeis em usar as novas ferramentas disponíveis para escolher alvos a serem demonizados. Escolhem e misturam duas espécies de demônios: um pode ser chamado de “sistema” ou simplesmente “tudo isso que está aí”, é a institucionalidade tradicional, que inclui o conhecimento e a organização política. O outro são os “invasores”, aquelas pessoas contra quem já tínhamos preconceito e que agora parecem estar por toda a parte.

Nos anos 30, crise do liberalismo, muitas pessoas seguiram líderes que pareciam fortes ofereciam os judeus em sacrifício para destruir um sistema político que parecia irremediavelmente corroído. Nada era oferecido de concreto. Não havia propostas sérias de como as vidas melhorariam. Mas era oferecida a destruição. Entre a falta de propostas de construção e a apatia, soava razoável para pessoas boas e inteligentes apostar no caos. Extravasar o ódio, identificar inimigos, sentir-se parte de uma insurreição, pelo menos, reconfortava.

Hoje, o cenário é semelhante e surgem líderes também semelhantes. Onde estavam os judeus, que “se infiltravam em toda a parte”, hoje estão os imigrantes, a população LGBT, os negros e as mulheres que comandam uma “ditadura comunista globalista”. Antes, usava-se o rádio e o cinema. Hoje, as redes sociais. Não faz sentido hoje, como não fez naquela época, mas não importa. Não é à toa que existe um projeto de lei que pretende criminalizar a “falsa acusação de nazismo”. A proposta é uma confissão do inconsciente.

Novas tecnologias extinguem empregos e profissões. Oferecem ainda uma nova forma de organização social em que cada pessoa vira um perfil, uma @, uma empresa, um produto. É possível criar uma identidade virtual de sucesso, de forma individualizada e desconectada do mundo real. A nova persona oferece ainda a ilusão de desvinculação de grupos marginalizados. Brasileiros comemoram a eleição de um presidente dos EUA que promete deportação em massa de latino-americanos, como se não tivessem nascido na América do Sul. Latinos são os outros, não nós.

Quem percebe o perigo é atraído para armadilhas. Para evitar a barbárie, precisa defender as instituições, mesmo que muitas vezes elas não se ajudem. Atrai para si a antipatia que elas produzem. Defender a democracia enquanto parlamentares se lambuzam com orçamento secreto e a justiça enquanto juízes promovem encontros com lobistas não é fácil.

Mas, pior é não entender que a origem do problema: a crise do neoliberalismo. Mesmo quem não conhece esse nome sente que o modelo vigente não vai trazer prosperidade para a maioria. Defender políticas de austeridade, ou falar contra elas enquanto as implementa, além de ser hipocrisia, não muda a causa do desconforto.

Superar as armadilhas é fundamental. É necessário ser capaz de enfrentar as mazelas das instituições, enquanto se defende a sua essência e pune quem atenta contra a democracia. Porém, ainda mais importante é atacar a causa principal. Por isso, nada deixou os pregadores do caos mais acuados que a proposta do fim da escala 6x1 de trabalho, apresentada por uma mulher transexual, a Deputada Érica Hilton. O projeto rompe a cortina de fumaça e capta a necessidade real.

O avanço tecnológico permite e exige que as pessoas trabalhem menos e cuidem mais dos filhos e de si mesmos. Contra a proposta, surgem os mesmos argumentos contra o fim do trabalho infantil, da escravidão ou da jornada de 8 horas por dia de trabalho. Contudo, descortinada a realidade, deixa de ser importante se a proponente usa o banheiro masculino ou feminino. O mundo só derrotou a barbárie dos anos 30 com uma guerra terrível. Para que nos saíamos melhor, precisamos ser capazes de oferecer o que as pessoas precisam de verdade. Não adianta jogar o jogo do ódio, aderindo aos preconceitos ou deixando de combatê-los. Não adianta insistir nas políticas excludentes neoliberais.

Ninguém quer o fim das relações de trabalho, o fim das vacinas, a distribuição de pistolas ou a queimada de florestas. Ninguém quer acampar em quartéis, acabar preso por participar de tentativa de golpe ou virar um terrorista que se explode, sendo abandonado e ridicularizado. Para não ceder à loucura e desistir da democracia e ideais humanitários de solidariedade, as pessoas precisam de motivos reais para acreditar ser possível um tempo bom, com trabalhos e vidas melhores para todos. Não adianta ficar calado e envergonhado com o que vemos. É preciso dar um jeito, meu amigo, de mostrar que ainda estamos aqui.

Rafson Ximenes é defensor público do estado da Bahia