Deus nos acuda e salve da produção acadêmica no Brasil

Desde a sua fundação, a Universidade tem a missão de investir em esforços estruturais e formativos para desenvolver o intelecto individual e coletivo da comunidade

Publicado em 19 de outubro de 2024 às 05:00

Eu sempre quis ser professor! Assim que concluí a Escola Politécnica da Ufba, onde me graduei como engenheiro mecânico, fiz concurso para o Instituto de Matemática da Ufba e passei em primeiro lugar para lecionar estatística. Tive de largar esse emprego federal para seguir a carreira de executivo, indo trabalhar na Bahia Sul (atual Suzano) pelo triplo do salário. Afinal, tinha duas filhas para sustentar e o salário de professor auxiliar era muito aquém das minhas ambições.

Minha esposa, Viveca, seguiu carreira no Instituto de Matemática e até hoje leciona estatística na Ufba. Meu pai, que foi oficial da Marinha de Guerra, lecionava Geografia na Escola de Aprendizes de Marinheiros. Enfim, lecionar faz parte da minha vida.

Tanto foi assim que, nos tempos que trabalhava na Suzano, me foi oferecido um MBA nos Estados Unidos que eu troquei por um doutorado na prestigiosa FGV – Escola de Administração de Empresas de São Paulo. Sabia que, como doutor ao me aposentar, teria uma segunda jornada profissional. Planejamento estratégico na veia.

E assim foi! Hoje leciono na Universidade Estadual de Feira de Santana (Uefs), com muito orgulho, onde coordeno a Área de Conhecimento de Administração em apoio ao meu amigo e diretor do Departamento de Ciências Sociais Aplicadas, Hélio Ponce, que mantém uma gestão focada no profissionalismo e na meritocracia. A Área de Conhecimento em Administração possui, além da graduação, dois cursos de pós-graduação lato sensu e um de mestrado. Somos 19 professores, 11 doutores e 8 mestres, as mulheres são a maioria, com dez professoras. Todos são concursados, fomos submetidos a um concurso ou seleção pública competitiva, ou seja, ninguém entrou “pela janela”.

Faço essa introdução para explicar que me sinto, como professor, profundamente frustrado e, porque não dizer, desapontado ao ler o resultado de 2024, publicado pela Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), que premia os autores das melhores teses de doutorado produzidas no país. Foram 49 teses premiadas, além de 97 que receberam menções honrosas. Ao todo, 1.632 doutores concorreram ao prêmio.

O ambiente universitário, por definição, deve ser um espaço aberto à criatividade e à inovação. Toda forma de conhecimento é válida e eu considero isso um dos maiores pilares da Universidade livre. É da soma de saberes e das diferentes perspectivas que nasce a boa ciência.

Por outro lado, algumas teses desenvolvidas por alunos de mestrado e doutorado em universidades públicas brasileiras são difíceis de explicar ao contribuinte, que, no frigir dos ovos, arca com todas as despesas. O fato é que resolveram fazer justiça social no Brasil por meio da Universidade, e isso é um erro porque a Universidade é um ambiente para se praticar a ciência, ou seja, há certas prerrogativas necessárias para frequentar uma Universidade, e isso não tem nada a ver com classe, nem cor, nem gênero, mas com a perspicácia acadêmica, a curiosidade científica e a competência, o que, a julgar por algumas teses premiadas pela Capes, infelizmente desapareceu.

É muito dramático que essa seja a situação das universidades brasileiras públicas. Diferente de algumas universidades particulares, que são empresas interessadas no pagamento do estudante, as públicas, teoricamente, estão interessadas em investir naqueles considerados parte da “elite” intelectual do país, os melhores alunos, aprovados por meio de exame disputadíssimo, o crème de la crème. Mas o que vejo é um festival de tolices, que assolam as discussões na Universidade pública como trabalhos sobre ‘bom dia a todes’, lacradores etc.

Que cidadão fica contente ao ver seu dinheiro pago em impostos aplicado em uma dissertação de mestrado sobre “Fazer banheirão: as dinâmicas das interações homoeróticas na Estação da Lapa e adjacências”? Vejamos um trecho:

“[...] percebo que, para além de um simples terminal com um sanitário, a Estação da Lapa é ressignificada como espaço de práticas sexuais de desejos dissidentes, na direção de interesses tão diversificados quantos são os sujeitos que interagem na cena e que só são reunidos aqui pelo traço em comum dos desejos, diversificadamente, homo-orientados (sic)”.

(Mestrado em Antropologia na Universidade Federal da Bahia.)

Ou a sensacional “Mulheres perigosas: uma análise da categoria piriguete” do Mestrado em Sociologia e Antropologia na Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde se lê:

“[...] a piriguete representa, primeiramente, uma mulher que não se adéqua às normas de conduta feminina – ela expressa sua sexualidade e seu desejo, sua liberdade e seu poder”.

A opção por temas pouco ortodoxos, especialmente nos cursos de ciências humanas e sociais, talvez ajude a explicar por que o Brasil nunca recebeu um prêmio Nobel – ao contrário de Argentina (5), Chile (2), Colômbia (2), Venezuela (1) e Peru (1).

O investimento total do poder público federal na educação, em números redondos e recentes, está um pouco acima de R$ 40 bilhões por ano: a Universidade fica com R$ 10 bilhões desse dinheiro todo. Só que há 45 milhões de alunos estudando no curso básico da rede pública de ensino, e só 2 milhões nas Universidades estatais. Ademais, o grosso dos gastos na Universidade pública do Brasil é torrado justamente nas humanas, onde alguns alunos e professores devolvem ao interesse comum muito pouco, ou nada, do que receberam. Daí surgem teses como "Brodagem, moral e músculo: a malhação de rua em Salvador", pasmem, ganhadora do prêmio Capes 2024 na categoria: antropologia/arqueologia, onde se lê:

“Esta etnografia descreve e analisa as relações entre masculinidades, espaço urbano, corpo e moralidade junto a homens jovens e adultos, moradores de um bairro popular da cidade de Salvador (BA). Os chamados “brothers” se reúnem assiduamente em um espaço público para praticar “malhação”, hipertrofia muscular com o uso de equipamentos improvisados e auto-fabricados (sic), e “calistenia” ou “treino street”, ginástica urbana baseada na recriação de movimentos da ginástica olímpica, do treino fitness, do breakdance e do le parkour. Os espaços públicos de treino físico tornam-se propícios à emergência de vínculos de sociabilidade quase exclusivamente masculinos e heterossexuais, acolhendo modalidades de socialização por meio das quais homens aprendem e incorporam técnicas esportivas de transformação da aparência corporal.

(Trabalho da Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas - FFCH.)

Essa tese até o meu amigo, o professor da academia BodyTech, um malhador profissional e mestre da “brodagem” – Lula Dival – não curtiu!

Nem a Bíblia escapou do prêmio da Capes/2024. Na tese "Efésios 5,21-33: Análise ético feminista da retórica de submissão da mulher nas obras da Editora Fiel", a autora tenta demonstrar o caráter misógino do Cristianismo. Maria Madalena deve ter se contorcido na sua sepultura.

“O sexismo e misoginia presentes na história do Cristianismo se encontram bem documentados e as pretensas bases bíblicas do discurso antropológico que afirma a inferioridade feminina seguem sendo problematizadas, bem como suas inevitáveis consequências.”

(Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia - Faje.)

Isso para não citar a obra-prima do desperdício do dinheiro público ''Vamos fazer uma sacanagem gostosa? Uma etnografia do desejo e das práticas da prostituição masculina carioca”, do curso de Mestrado da Universidade Federal Fluminense. Sobrou até para Platão:

[...] pululam as sensações, fantasias e prazeres, as saunas tornam-se territórios existenciais, em que se ativam os fluxos molares do desejo, e os sujeitos são atravessados por sua potência criativa de produção e intensidades. Assim, a etnografia opõe-se à filosofia clássica de Platão que toma o desejo como falta ou ausência.

Que se deixe aqui claro que não faço uma defesa do ensino privado. Pelo contrário, reconheço que a Universidade Pública é um dos poucos mecanismos de mudar a vida das pessoas. Sou fruto do ensino público. Sou professor no ensino público. Penso que a mercantilização da educação superior no Brasil se transformou num problema crônico, mesmo sob a minha visão e perspectiva capitalista. A maior vítima do processo de mercantilização da educação é o próprio mercado. Com a expansão desenfreada de graduações rápidas e desreguladas, nossa população diplomada cresce em quantidade, mas não em qualidade. Isso afeta diretamente aquilo que os economistas costumam identificar como um dos maiores problemas da indústria brasileira, a baixa produtividade.

O que aqui defendo é a retirada do viés ideológico da Universidade Pública. Enquanto esse mofo ideológico não for removido das nossas Universidades, nosso ensino estará condenado ao atraso e à intolerância. É preciso marchar em prol da inovação e do livre pensar. Estamos falando de dinheiro público.

Desde a sua fundação, a Universidade tem a missão de investir em esforços estruturais e formativos para desenvolver o intelecto individual e coletivo da comunidade. Esses esforços visam a nobre tarefa de buscar a verdade, onde quer que ela esteja, sem se deixar influenciar por ideologias. Após essa investigação inicial e formulação de conceitos, sua segunda missão é apresentar essa verdade à sociedade de forma acessível, sem distúrbios ideológicos, sem desperdício de dinheiro em baboseiras acadêmicas, sem “todes”.

Jorge Cajazeira é Ph.D. em Administração pela FGV/ e professor da Uefs.