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Os sertões de Geraldo Sarno: conheça o cineasta do interior da Bahia que sonhava em preto e branco

No segundo episódio do especial audiovisual, revisitamos a obra do cineasta baiano Geraldo Sarno; veja vídeo

  • Foto do(a) author(a) Christina Mariani
  • Christina Mariani

Publicado em 7 de novembro de 2023 às 20:22

Frame do filme
Frame do filme "Sertânia", de 2020 Crédito: Arte/Christina Mariani

Em 2020, durante a pandemia da Covid-19, eu tive o privilégio de dividir uma mesa com o cineasta Geraldo Sarno, durante um debate virtual no Festival Ecrã, um festival de cinema experimental e de arte contemporânea do Rio de Janeiro. De cá, meu desejo era apenas ouví-lo. De lá, ele desejava ouvir a mim, ao meu parceiro de filme e, não unicamente, dizia que teríamos muito a ensiná-lo.

Dentre as diversas falas que reproduzo quase como uma reza, uma retornou à minha memória: Geraldo Sarno disse que sonhava em preto e branco. Escapa das minhas competências - sem ajuda de uma análise - entender os porquês dessa frase ter me marcado, enquanto poderia reproduzir entendimentos sobre montagem ou direção cinematográfica. Mas, aquela sentença me fez retornar a algumas imagens, muitas delas pensadas por Geraldo Sarno, a maioria sobre sertões. Imagens de um sertão cru, doído, mas que ainda assim flutuam como traços de sonhos.

Nascido em Poções, no sudoeste baiano, em 1938, Geraldo Sarno se mudou para Salvador no final da década de 1940, onde viveu até o início dos anos 1960. Formou-se com uma geração de efervescência cultural e que conclamava por ares de mudança, tendo importantes figuras-chaves em distintas áreas culturais.

No cinema, por exemplo, o “Clube de Cinema da Bahia”, sob a influência de Walter da Silveira, teve papel formador para o interesse de Geraldo por cinema, atrelado às experiências com o recém-criado Museu de Arte Popular, coordenado pela arquiteta ítalo-brasileira Lina Bo Bardi. Bo Bardi, aliás, foi uma grande influência para que o cineasta construísse seu pensamento sobre cinema, ao compreendê-lo como prática social.

A aproximação com o cinema, primeiramente, acadêmica, torna-se uma possibilidade de ofício após uma viagem para Cuba, em 1962, quando foi enviado como representante da UNE (União Nacional dos Estudantes). Por lá permaneceu durante um ano, aprofundando seus estudos sobre a sétima arte. O cineasta, que morreu em 2022, se dizia um formalista, e sua trajetória cinematográfica se propôs a realocar um pensamento de cinema do campo do discurso para o campo da linguagem, entendendo-o enquanto forma. E esse movimento conduziu uma força que deu importância e emergência ao cotidiano, sobretudo, à vida do povo nordestino.

Entre 1964 e 1980, ao lado da Caravana Farkas - projeto idealizado em parceria com o produtor Thomas Farkas -, Sarno dirigiu uma série de documentários sobre a cultura popular brasileira, mais especificamente, sobre a vida e a cultura no sertão nordestino. As obras tanto marcaram o desenvolvimento do moderno documentário brasileiro como contribuíram para a construção de um imaginário sobre o sertão. A memória, afinal, é um dos pontos que o cinema, enquanto arte, se ocupa.

Os documentários transpõem à tela olhares que penetram o mais profundo do sertão nordestino e documentam a retirada com destino ao sul - ou as consequências do movimento migratório no país -, as crendices - ou as expressões da fé popular -, e o progresso - ou, melhor dizendo, a organização da economia e do mundo do trabalho.

Dentre os títulos, alguns se destacam por sustentarem as personagens e mitos que forjam a imagem sobre o sertão: cangaceiros, santos, cordelistas, migrantes, artesãos, em contramão à promessa do progresso capitalista que implica alterações sociais, culturais e espaciais, e quase nunca logra êxito. Vitalino – Lampião (1969) e Os imaginários (1970) são registros de um ofício em transformação, artesãos que deixam de realizar um trabalho antes sustentado por uma demanda popular, deixando a construção coletiva do mito para seguir uma demanda do turismo. Vivem, por assim dizer, uma contradição, seu desejo individual não mais condiz com sua ação.

A contradição, por sinal, é um elemento narrativo recorrente em suas obras, em outro filme, Viva Cariri (1969), o cineasta entrecruza a cotidianidade da fé e da cultura com o avanço industrial, na região do Cariri, no Ceará. O arremate de todos esses entrelaçamentos é observado na sequência em que há um movimento reverso durante uma procissão religiosa, como uma aproximação com o passado mediada pelo artifício do cinema.

Por outro lado, em Padre Cícero (1972), ele se aproxima de maneira mais unilateral do sentimento que se torna motivo de vida, a fé. O documentário, sobre a vida do padre, do coronel, do político e do santo popular, retrata também os anseios e as ilusões da multidão de adeptos que permanecem impávidos há centenas de anos.

Sua intenção ao realizar esses documentários era também política: fazer o registro de um universo que ele enxergava estar vivendo uma intensa transformação. O conjunto de obras, para Geraldo, deveria permanecer como documentação de um cerne, de um momento distintivo da expressão cultural e artística do povo brasileiro. E por ser um sertanejo, do sudoeste baiano, território que liga o sertão mineiro ao nordeste, Geraldo Sarno era sensível às temáticas, ao também ser um estrageiro em São Paulo, ao viver o Brasil profundo, a entender o singular habitual, da religiosidade ao trabalho.

Em sua derradeira obra, Sertânia (2020), toda em preto e branco, Geraldo Sarno faz um retorno a uma das temáticas que esteve presente em toda a filmografia. No filme, um homem volta ao sertão, sua terra de origem, à procura do seu pai. É ferido pelo seu patrão e algoz, e então acompanhamos seus últimos delírios.

Entre o delírio e a lembrança, a memória fabulada por nós mesmos nunca será enganosa. O retorno desse personagem recupera o tema da sua primeira grande obra, Viramundo (1965), que introduziu o fio condutor de sua trajetória: o personagem migrante. Seu último filme sintetiza a própria compreensão da migração de Geraldo, para o cineasta ela nunca será uma direção única, uma migração, na verdade, é uma circulação, e essa é a vida.

Assim construiu imagens, retratando desde a relação dos sertanejos e seus mitos, no ofício dos artesãos de santos e cangaceiros, no movimento retilíneo da fé que busca na figura de Padre Cícero acalento e certezas, ao caminho circular da migração que se guia pela procura de sobrevivências, até chegar ao entendimento que a economia do trabalho nem sempre supera o mito, a morte e a fome. Geraldo Sarno fez do cinema um instrumento do pensamento e da criação, e construiu a partir de sua trajetória um álbum do sertão, uma memória viva.

Tags:

Cinema