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Da Redação
Publicado em 24 de maio de 2020 às 06:03
- Atualizado há 2 anos
Quando a pandemia do novo coronavírus acabar, como os baianos vão comemorar? Dá até pra imaginar o tamanho da festa nas ruas de Salvador e de várias cidades do interior. Talvez a gente nem precise efetivamente recorrer à criatividade para idealizar este momento. Na história há um precedente muito inflamado da reação do nosso povo após um grande período de provação e dificuldade.>
Neste mês, completam-se exatamente 75 anos da rendição dos alemães na II Guerra Mundial. No dia 2 de maio de 1945, Berlim foi ocupada pelo exército soviético. Em Salvador, o clube Fantoches, no 2 de julho, organizou uma enorme passeata cívica, que terminou com um comício dos estudantes na Praça da Sé. No dia 8, os alemães assinam oficialmente a rendição, findando o conflito no Velho Continente.>
Na capital baiana, assim que as notícias do armistício começaram a circular, o comércio fechou as portas e a circulação dos bondes foi interrompida, dada a quantidade de gente aglomerada, sobretudo na Rua Chile. As repartições não funcionaram e a bandeira brasileira foi hasteada em vários prédios públicos. As marchinhas de carnaval reapareceram entregando aquele dia à farra e a mais pura esbórnia libertadora. Povo ocupa as ruas do Centro de Salvador em comemoração ao Carnaval fora de época (Foto: Reprodução) A comemoração efusiva dos baianos tem explicação. Apesar dos bombardeios, das destruições e da enorme quantidade de mortes terem acontecido bem longe do Brasil, os efeitos imediatos da guerra foram reverberados por aqui. A historiadora Consuelo Novais Sampaio, professora da Ufba, falecida em 2013, tem um excelente artigo publicado na Academia de Letras da Bahia intitulado A Bahia na Segunda Guerra Mundial (confira aqui).Nele, Consuelo diz que “através do verbo falado e escrito, das obrigações de guerra, de doações espontâneas, de campanhas como a dos metais e da borracha, da confecção de meias e agasalhos de lã, o baiano participou da guerra”.Houve ainda ações mais diretas. Muitos conterrâneos foram enviados para integrar a FEB (Força Expedicionária Brasileira), que desembarcou para lutar na Itália. Por aqui, teve ainda aumento absurdo no preço dos alimentos, racionamento de gasolina e o blecaute. A vida do baiano piorou muito durante o período de conflito mundial.>
Neste vídeo é possível ver a ação da FEB durante a batalha em Monte Castelo, na Itália.>
A força dos baianos A historiadora atribui aos baianos a primeira ação mais direta, em todo o país, de cobrança para o governo de Getúlio Vargas abandonar a neutralidade e assumir uma posição em prol dos Aliados (Inglaterra, França, União Soviética e os Estados Unidos).>
Em janeiro de 1942, após sucessivos ataques aos navios mercantes na costa brasileira, populares depredam a loja de charutos Danneman & Cia, gerida por descendentes alemães, que haviam se estabelecido em São Félix, no Recôncavo, e expandido comércio com lojas em Salvador.>
O líder comunista baiano João Falcão diz que partiu da Bahia “o primeiro grito de revolta contra o nazismo”. No resto do país começava ali uma série de perseguições injustificadas a migrantes vindos de países do Eixo (italianos, germânicos, espanhóis e japoneses).>
Os estudantes baianos foram às ruas com caricaturas de Hitler desenhado como um monstro. A campanha teve adesão de professores da Universidade da Bahia, médicos, advogados, engenheiros e dos comunistas, inclusive Jorge Amado, que retornava do exílio naquele ano, após sofrer perseguição durante o Estado Novo. A Rádio Sociedade da Bahia, única em todo o estado, tocava com frequência A Marcha para a Vitória, além de exibir programas sobre os Aliados durante a Grande Guerra.>
Teve comício também em Vitória da Conquista, Itabuna e Feira de Santana. Em agosto, Vargas decide pela entrada do Brasil na guerra. Naquele mesmo mês, em resposta, cinco navios brasileiros são torpedeados na Bahia – o saldo foram 550 mortos, entre tripulantes e passageiros. Em São Félix e Cachoeira, o clube alemão foi invadido e depredado. Em Salvador, vários alemães ficaram detidos no Quartel dos Aflitos e na Vila Militar dos Dendezeiros. Jornal anuncia a entrada definitiva do Brasil na Guerra (Foto: Reprodução) Vida difícil A vida piorou muito durante a guerra. Toda a economia do estado foi orientada a produzir equipamentos destinados a servir as trincheiras na Europa. Os preços dos alimentos essenciais encareceram bastante, principalmente feijão e arroz.>
A gasolina entrou em sistema de racionamento. A distribuição era pouca e os motoristas precisavam economizar até a chegada de novos barris de petróleo. Cada um tinha direito a apenas 10 litros por abastecimento, mediante a apresentação de um cartão de autorização.>
Com a demora na reposição, vários postos foram fechados. No auge do desabastecimento funcionavam apenas dois em Salvador: um na Praça Castro Alves e outro no Comércio. As filas eram gigantescas.>
Com a entrada do Brasil no conflito mundial, em janeiro de 1943, o governo federal criou um novo imposto chamado de “obrigações de guerra”, calculado a partir da renda de cada cidadão e dividido em cotas mensais. Estima-se, escreve Consuelo, que 18 mil baianos quitaram seus compromissos no período.>
Outra ação de Vargas foi decretar o blecaute parcial da costa brasileira. Era uma medida preventiva estendida a todos os estados litorâneos, no intuito de dificultar que as cidades fossem bombardeadas pelos submarinos e navios do Eixo.>
Havia uma expressa obrigação em reduzir as luzes das casas. Os postes públicos diminuíam também sua potência, deixando a área em um quase completo breu. O Farol da Barra foi desligado. Cinemas, cassinos e casas noturnas não podiam funcionar. Até o Farol da Barra foi impedido de funcionar durante o blecaute imposto durante a guerra (Foto: Reprodução) Uma Comissão de Fiscalização do Escurecimento, com policiais a postos nos bairros da Barra, Rio Vermelho, Amaralina e Pituba, certificava o cumprimento da determinação.>
Consuelo narra que, quem não colaborasse, tinha a energia cortada. Os policiais ainda agiam com autoritarismo e “partiam em direção à casa infratora como se quisessem arrombar a porta”.>
No extremo-sul da Bahia, onde o navio Affonso Pena foi afundado provocando 125 mortes, escreve o historiador Tharles Silva, houve toque de recolher e soldados brasileiros foram enviados para ocupar pontos estratégicos da região (veja aqui).>
Em Salvador, estudos técnicos apontaram locais que serviriam de abrigos antiaéreos, em caso de um bombardeio alemão. Os subterrâneos das igrejas e conventos, prédios coloniais, as arcadas da Ladeira da Conceição e por baixo da Praça Castro Alves eram os locais indicados e divulgados massivamente nos jornais, conforme explica a historiadora Maria Helena Chaves Silva (veja aqui).>
Diante deste cenário de terror, encarecimento da vida e de tantas privações, quando a guerra acabou, os baianos organizaram um enorme carnaval fora de época em maio de 1945.>
A pandemia atualmente traz para os baianos consequências terríveis, embora urgentemente necessárias para evitar contaminação pela covid-19. Quando tudo isso acabar, após enterrar dignamente nossos mortos, vamos também celebrar a vida.>