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André Uzeda
Publicado em 15 de dezembro de 2024 às 02:00
Entre setembro de 1999 até junho de 2000, o Brasil se comoveu com o cálido romance de Thiago Lacerda e Ana Paula Arósio, intérpretes de Matteo Batistela e Giuliana Splendore na novela Terra Nostra, da Rede Globo.
As desventuras do casal tem como pano de fundo o desembarque em massa dos italianos no país, embora a trama ignore os reais interesses da elite brasileira em incentivar o processo migratório: embranquecer a população, substituindo a mão de obra negra, escravizada, pelos recém-chegados europeus.
Terra Nostra se passa em São Paulo e mostra o desenvolvimento da paulicéia naqueles primeiros anos do século 20. Mas bem que poderia ter sido filmada em Jequié, a “cidade do Sol”, cravada no planalto do sudoeste baiano, no limite entre a zona da mata e o sertão.
Assim como em todo Brasil, mais precisamente nos estados do sul e do sudoeste, o governo baiano também incentivou a vinda de europeus, prometendo prosperidade e nacos de terras públicas, com objetivo de povoar os territórios para além da Chapada Diamantina – considerados “inóspitos e sem perspectiva de desenvolvimento”.
Jequié tinha recém se emancipado da comarca de Maracás e ainda era um pequeno arraial quando, no final do século 19, os migrantes da Bota começaram a efetivamente pisar neste chão. Além da cidade Sol, os italianos se espalharam também por municípios próximos, como Poções (com a família Sarno) e Itiruçu (os D’ Emidio).
Em sua tese de doutorado, defendida na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Maria Luiza Braga Landim conta que boa parte do fluxo migratório que chegou ao sertão da Bahia veio da cidade de Trecchina, na região da Basilicata, ao sul da Itália.
Essa região foi um dos epicentros da guerra pela unificação do país, que durou mais de 50 anos, e explica a razão de tantas pessoas terem sido seduzidas pelas propagandas brasileiras para atravessar o Atlântico e vir para cá.
Os italianos que chegaram em Jequié, conta Landim, guardavam uma diferença fundamental em comparação com as de outras regiões. Eram mascates. Vieram com recursos próprios, diferentes dos “lavradores desenraizados” que chegaram no interior de São Paulo para trabalhar nas plantações de café, se submetendo a baixos salários e condições precárias de trabalho.
Essa distinção estabeleceu uma relação de “dominação e imposição” com os sertanejos, mas também fez a cidade rapidamente se desenvolver como um pólo comercial e principal município do sudoeste – superado só depois por Vitória da Conquista, que cresceria impulsionada pela abertura da Estrada Rio-Bahia, a BR-116.
Quando Jequié virou capital da Bahia
Com o próspero desenvolvimento, Jequié experimentou uma fase áurea no começo do século 20. Uma das principais figuras neste contexto histórico é do comerciante italiano Giuseppe Rotondano.
Junto com seu compatriota, o xará Giuseppe Nielle, formaram a primeira firma da cidade: Rotondano & Niella, no ramo de alimentos. Um monopólio que negociava a venda do cacau, no período próspero da plantação do produto no sul do estado.
Seria Vicente Grilo, também afortunado comerciante italiano, o principal benemérito. Ele financiou o primeiro ginásio da cidade, além de doar terrenos para serem construídos o aeroporto, cemitério e a primeira agência do Banco do Brasil de Jequié – alguns destes espaços foram invadidos e destruídos pelo bando de Zezinho do Laço, o cangaceiro que atormentava a região.
Sagaz, Grilo entendeu que para evitar conflitos com os sertanejos era preciso incluí-los no desenvolvimento e na prosperidade de Jequié, além de imprimir importantes marcas sociais identitárias. O relógio da igreja, na praça da matriz, foi dado pelo empresário – numa reprodução fiel ao da cidade de Trecchina, o que conferiu às cidades o título de irmãs, reconhecido pela Unesco.
A prosperidade de Jequié era tão ascendente que, quando Salvador vivia um conflito aberto com o governo federal, a cidade do Sol foi escolhida para ser a capital do estado momentaneamente. O conflito terminou com o bombardeio do exército ao Palácio Rio Branco, na Praça Municipal de Salvador, em janeiro de 1912.
Tudo foi por água abaixo
Em 1914, Jequié viu parte do seu prestígio, riqueza e prosperidade ir por água abaixo. Uma cheia histórica do Rio de Contas destruiu o comércio, a feira, residências e prédios públicos.
A historiadora Maria Luiza Braga Landim conta que Jequié precisou ser praticamente reconstruída do zero, levando a burocracia e o comércio para as partes altas.
Isso levou a cidade a ganhar o apelido de “Chicago Baiana”, pois a lembrança da destruição da metrópole norte-americana ainda era muito presente, com o incêndio que consumiu boa parte dos prédios e quadras, além de matar mais de 300 pessoas.
Com tantas histórias, Jequié merece ser cenário de um remake ítalo-sertanejo, quando a Globo for regravar Terra Nostra.
Esta coluna é dedicada à memória de Elton Magalhães, professor, mestre em literatura, cordelista, Filho de Gandhy, sambista e torcedor do Bahêa.