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Publicado em 9 de fevereiro de 2025 às 05:00
A Pituba é, inegavelmente, o bairro mais metido à besta de Salvador. Era uma grande fazenda, que só foi transformada em loteamento urbano 370 anos depois da capital baiana ser fundada por Thomé de Souza. >
Ou seja, a Pituba não existia durante todo o tempo que Salvador foi capital da colônia, o principal porto da América do Sul, ou mesmo quando por aqui desembarcou a Família Real Portuguesa, em 1808, fugindo do exército napoleônico.>
Mesmo alheio, pelo desenvolvimento tardio, a momentos áureos da nossa história, o bairro sempre conservou um certo ar esnobe – muito melhor observado pelos não moradores, uma vez que os efetivos residentes insistem em negar a tal pecha arrogante. >
Há momentos, no entanto, em que a presunção faz toda a diferença. Em muitos bairros de Salvador, durante a década de 1980, existiam jornalzinhos para organizar notícias sobre o comércio local, divulgar eventos culturais dentro das cercanias da vizinhança ou fazer reivindicações específicas à prefeitura.>
O Jornal da Pituba, não. Durou pouco, apenas o período entre 1985 a 1986, mas publicou artigos e entrevistas sobre a redemocratização do Brasil, o avanço da Aids, ecologia urbana, feminismo e liberação da maconha. A distribuição era gratuita e chegou a imprimir 45 mil exemplares.>
Entrevistou personalidades como o antropólogo Darcy Ribeiro; o ex-governador por dois estados (Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro) Leonel Brizola; o ex-guerrilheiro e jornalista Fernando Gabeira; o cantor Dorival Caymmi; o casal de escritores Jorge Amado e Zélia Gattai, o também escritor João Ubaldo Ribeiro, além do ator Grande Otelo e, claro, do Rei do futebol, Pelé.>
O Jornal da Pituba teve perfis literários escritos sobre o militante comunista Theodomiro Romeiro, sobre o cantor Moraes Moreira e também o fotógrafo e etnólogo francês Pierre Verger. >
Caetano Veloso colaborou para o jornal, assim como também foi entrevistado. Os poetas tropicalistas José Carlos Capinan e Waly Salomão também enviaram seus escritos. Uma das edições do Jornal da Pituba publicou um texto inédito e póstumo do cineasta Glauber Rocha, morto em 1981. >
Da Pituba para o Brasil>
A história do pequeno veículo, em formato tablóide, está muito bem documentada no livro ‘Jornal da Pituba - A um Passo da Liberdade”, publicado em janeiro do ano passado pela Editora Maianga.>
Lá, os autores, antigos colaboradores do jornal, contam que o periódico nasceu como um “um simples jornal de bairro” mas, por conta de “alguma transação comercial, foi parar nas mãos dos donos de uma empresa de publicidade”.>
Os novos proprietários, então, resolveram transformar o Jornal da Pituba em um veículo inflamado para turbinar a campanha de 1985, responsável pela escolha do novo prefeito da cidade. Era a primeira eleição direta que aconteceria no país sem a supervisão de um general na cadeira de presidente, após 21 anos de ditadura militar.>
Os jornalistas que compunham a redação formavam um time experiente, acostumados a servir tanto na imprensa tradicional quanto na alternativa. Pessoas como Césio Oliveira, Renato Pinheiro, Vander Prata, Zé Barreto de Jesus, José Américo e Sérgio Guerra. >
As charges eram desenhadas pelo cartunista Hélio Lage e a diagramação das capas ficava ao encargo de Rogério Duarte, professor da Ufba e ilustrador que desenhou muitos dos LPs da Tropicália. Havia uma pequena fraude no Jornal da Pituba. Apesar do nome indicar um determinado bairro, a casa que servia de redação ficava em outro, um pouco adiante.>
“Isso era uma grande piada. O Jornal da Pituba, na verdade, ficava em Amaralina… (risos). Era uma turma muito amiga, que se divertia em fazer entrevistas picantes, textos divertidos e provocadores. As pautas eram muito pensadas antes do jornal ser publicado”, lembra Vander Prata, jornalista e um dos autores do livro.>
As entrevistas repercutiam Brasil afora. Em uma delas, o arcebispo da Bahia e primaz do Brasil, Dom Avelar Brandão, pregou que a Nova República não fosse revanchista com os militares. Dorival Caymmi, ao ser perguntado qual seria seu destino após morrer, declarou que “esse negócio de céu está meio desmoralizado”.>
João Ubaldo revelou sua cisma pessoal com Leonel Brizola. Zélia Gattai fez críticas ao feminismo e Pelé cornetou o técnico Telê Santana, às vésperas da Copa de 1986, no México.>
Em um trecho delicioso, Jorge Amado é questionado se pode ser considerado o papa da cultura baiana. “Eu só não xingo sua mãe porque meu machismo impede que eu fale na frente de uma moça”, respondeu bem-humorado, fazendo referência à fotógrafa Sonia Carmo, que registrava a entrevista.>
Jornal lançou um cocô para prefeitura>
Os temas políticos predominavam nas edições, mas dividam espaço com conteúdos culturais e também sobre comportamento. Os três assuntos eram sempre embalados pelo mesmo tempero: o bom humor.>
Em um editorial cômico, o Jornal da Pituba anunciou apoio a Adalberto Pituboião,um candidato fictício representado por um bolo de fezes, de terno e gravata. O objetivo da pilhéria era denunciar a sujeira da cidade e também da política, naquele começo turbulento de redemocratização do país, em 1985.>
Pituboião criticava a poluição das praias e do Rio Camurugipe, a proliferação de arranha-céus na orla da cidade, o trânsito caótico de Salvador e a absurda desigualdade social.>
O “candidato de mão cheia”, como era chamado, morreu atropelado por uma kombi antes de ver sua carreira política decolar. Um obituário publicado pelo Jornal da Pituba convocava os apoiadores a comparecer ao funeral, partindo do emissário submarino de Salvador.>
A irreverência era uma inspiração direta do ‘Pasquim’, o mais famoso jornal alternativo do Brasil, fundado durante o período de repressão pelos jornalistas Jaguar, Tarso de Castro e Sérgio Cabral (pai do ex-governador do Rio, Sérgio Cabral Filho).>
“Os nomes dessa geração eram nossos heróis do jornalismo. Porém, há uma diferença grande entre o Pasquim e o Jornal da Pituba. Quando criamos nosso jornal, o Brasil vivia um momento muito positivo de esperança, pois estávamos vivendo a redemocratização. Infelizmente, nossos sonhos não se confirmaram como imaginávamos”, lamenta Prata.>
Apesar de efervescente, o tablóide teve uma vida curta, morrendo ainda na primeira infância. Foram apenas 24 edições, alternando entre tiragens semanais, quinzenais e mensais. O Jornal da Pituba não chegou a sobreviver à virada do ano de 1987. Ainda assim, marcou época, levando a Pituba para o centro do debate político do Brasil.>
Essa coluna é dedicada à memória de Margarida Maria Nunes Neves da Rocha, moradora da rua Minas Gerais, na Pituba, onde criou seus oito filhos, que se multiplicaram em 21 netos e 7 bisnetos.>