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Da Redação
Publicado em 21 de fevereiro de 2021 às 06:30
- Atualizado há 2 anos
Garrincha (agachado, à esquerda) posa para foto antes de Atlético de Alagoinhas x Santos; arquibancadas lotadas (Foto: Acervo Francisco Bacelar) Era 1º de abril de 1972 e, para muitos, ainda parecia mentira a informação que cortou Alagoinhas mais rápido que o trem: Pelé não jogaria no dia 2. Seria a estreia do maior de todos em Alagodé, como é chamada a cidade do nordeste baiano pelos mais chegados. A ‘presença vip’ do Rei ocorreria num amistoso entre Santos e o aniversariante Atlético de Alagoinhas. “Como assim, Pelé não vem?”, questionavam-se pelas calçadas até as beatas, ora descrentes.>
Apesar dos ingressos venderem que nem água, Sua Majestade, realmente, não desaguaria no estádio Carneirão no domingo adiante. Coube então ao prefeito da cidade – a qual ostenta a fama de “segunda melhor água do mundo” – buscar o segundo melhor nome possível para ‘substituir’ Pelé, e manter a chama do delírio coletivo acesa. Foi assim que Garrincha, nome de passarinho, voou para acudir o Carcará.>
Era o aniversário de dois aninhos do clube (atual vice-campeão baiano), e outro novinho da ocasião lembra bem da comoção que a vinda do astro gerou. Atual secretário estadual da Infraestrutura, Marcus Cavalcanti tinha 12 anos quando recepcionou Garrincha. “Ele chegou no dia do jogo e foi lá pra casa. Não tinha concentração, nem nada, porque era jogo de exibição”, relembra o filho de Murillo Cavalcanti (in memoriam), prefeito da época e um dos fundadores do clube. Garrincha ao lado de Murillo Cavalcanti, ex-prefeito de Alagoinhas, no dia do amistoso (Foto: Acervo Marcus Cavalcanti) Dias antes da vinda do Santos 'de Pelé', os jogadores do Carcará se preocupavam. Um dos melhores do time, inclusive, confessou o temor que o Rei lhe provocava.“O meio-campo do Atlético tinha Dendê e Merica [posteriormente contratados pelo Flamengo], com Catu na frente de zaga. E Catu contou que tava com medo de marcar Pelé: ‘não vou bater, mas vou colar nele o jogo todo’, dizia ele. E eu, menino, lembro dessa conversa lá em casa”, cita Cavalcanti.Sem Rei Uma contusão de Pelé, poucos dias antes, poupou o cagaço de Catu, que viu sair da frente o grande oponente e ganhou um formidável aliado. A expectativa positiva do público, no entanto, foi lá pra baixo, sem O Cara, mas tudo mudou rápido. “O fato dele não vir gerou uma decepção, mas atenuou porque a contusão foi algo de jogo. Não foi ‘desculpa’ para não jogar no interior. Aí entrou Garrincha, com dois ou três dias”, destaca o titular da Seinfra.>
Outro que lembra da decepção com a baixa real é Chico Reis, também ex-prefeito, então com 19 anos. “Salvo engano, o Santos jogou no meio de semana, em São Paulo, já sem Pelé. Ele estava se recuperando de um estiramento, e o Atlético havia contratado o Santos para vir com o seguinte acordo: com Pelé era um valor, sem Pelé era outro, mais baixo”, recorda ele, que elogiou Murillo pelo contra-ataque fulminante.>
Isso era imprescindível, afinal, àquela altura, muitos ingressos já tinham sido vendidos. O amistoso, aliás, mobilizara toda a região. Garrincha foi a reparação ideal. “Vieram caravanas de Ribeira do Pombal, Nova Soure, Olindina, Ouriçangas, Mata de São João, então, essas pessoas vieram não apenas para ver o Santos e o Atlético, como e principalmente para ver Mané Garrincha”, destaca Reis, que tentou acompanhar cada passo das pernas curvas de perto. >
Aglomeração e birinaites “Foi um dia de festa. Parou a cidade. Acompanhei a chegada de Garrincha desde a manhã, quando ele se hospedou na casa do prefeito, que morava atrás da Igreja Matriz. Passou a manhã com a casa cercada de gente. Eu vi Garrincha ali de perto”, conta Chico Reis, lembrando do calor humano e do atmosférico, os quais fizeram Garrincha beber da água que passarinho não… Ops! Bom, reza a lenda que o craque já sabia que o H²O local era ideal para produzir cerveja…“Eles estavam bebendo pela manhã, Garrincha também. Quando o vi, bebia cerveja, embora dissessem que de vez em quando tomava uma mais quente. Almoçou também na casa de Murillo. Na parte da tarde, o jogo aconteceu”, resume o paparazzi de ocasião.Um desses curiosos no entorno da mansão dos Cavalcanti era o sogro deste colunista, o aposentado Fernando de Souza, 62. Foi ele quem me contou essa história, sobre a qual perguntei ao Google, que disse desconhecer completamente. “Cheguei perto de Garrincha, tirei até foto, mas não tenho mais. Muita gente chegou perto dele”, relembra a aventura de guri.>
O engenheiro químico Francisco Bacelar, 58, era ainda mais menino que meu sogro, e lembra um tanto menos daquele dia histórico para Alagoinhas, embora o suficiente para descrever o ambiente. “Gente como a porra, menino como a porra! Eu tinha 10 anos, e a gente queria ver a zuada, a muvuca”, conta ele, que é filho do empresário José Carlos Madarino Bacelar, diretor do Carcará na época. >
Lembrar da partida é também uma forma de matar a saudade do velho, que faleceu em agosto passado, vítima da covid-19, meses antes de completar 91 anos. “Meu pai teve a vida dedicada ao esporte, ao futebol. Em 72, era diretor do Atlético e viria a presidir o clube em 76”, lembra Francisco, explicando o motivo de ter guardada consigo a imagem rara (inédita na internet) de Garrincha como ponta-esquerda do time da casa.>
Quase a contragosto, foi ele também que assinalou a participação do craque, no ano seguinte, em um amistoso em Feira de Santana, grande rival regional. “O futebol sempre mexeu com Alagoinhas. E a gente sempre rivalizou com Feira, com o Fluminense, e o comércio também, tudo. Existia uma rivalidade muito grande, e chegava a ter confronto de torcidas organizadas”, cita, como que ciumando o dia em que Garrincha vestiu a camisa do Touro do Sertão. Em 73, no aniversário de emancipação de Feira, Garrincha jogou o amistoso local Fluminense 1 x 0 São Paulo. Em cada tempo vestiu uma camisa. Nessa foto divulgada pelo Flu, aparece ao lado de Mundinho, pai de Júnior Baiano (Foto: Flu de Feira/Reprodução) Dez anos da segunda estrela Traição perdoada, como também o fato de não ter jogado quase nada em Alagodé. Quem entrega é Chico Reis, outro que registrou o clima no estádio, no 3 x 0 que o Peixe impôs, sem amplos reclames locais.“Estava lotado. Foi um dia de festa e eu tive a felicidade de ver aquele jogador com as pernas tortas e um futebol muito bom, embora nesse jogo ele não tenha ido tão bem. Não só por causa do peso da idade, mas também pelos birinaites que povoaram a mente”, anota o ex-prefeito, que antes da carreira política, chegou a jogar pelo Atlético.Um tanto antes dele, naquele memorável abril de 72, Garrincha envergou a 7 do Carcará como que para marcar no livro das coincidências os 10 anos de sua jornada no Chile. Por lá, nas cercanias de Viña Del Mar, pegou, matou e papou a segunda estrela, o bi mundial do Brasil, trilhando igualmente a ausência incidental e involuntária de Pelé. Uma década depois, uma semana depois de se aposentar no Olaria, Garrincha encontrou Alagoinhas esperando por ele na estação, na hora exata para a partida perfeita por linhas tortas.>