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Gabriel Moura
Publicado em 18 de fevereiro de 2024 às 07:00
Se a frase “O Bahia é o mundo”, patenteada pela turma tricolor, divide o estado, trocando gênero e grafia atinge-se a unanimidade. "A Bahia é o mundo", claro, e também "Baía é o mundo". Ou deveria, se não fossem alguns gringos que se apropriaram da laranja made-in Cabula.
Entenda: a segunda laranja mais consumida no mundo atende pelo nome de laranja-baía ou laranja-de-umbigo. Mas só em sua terra natal. No resto do mundo ela é conhecida como Washington Navel. Os culpados? Um bispo e uma dona de casa.
Quem denunciou, explicou e estudou a laranjada foi o pesquisador Archibald Dixon Shamel, escritor do livro “The Navel Orange of Bahia” [“A Laranja-de-Umbigo da Bahia”, em tradução literal] em 1917. Lá, ele narra que é quase certo que a espécie é uma mutação natural derivada da laranja seleta que apareceu em uma fazenda do Cabula, em Salvador, entre 1810 e 1820.
“No século 19, 20, o Cabula era formado por muita área de mata nativa, algumas fazendas que cultivavam, principalmente, laranja e quilombos. Tanto que o nome 'Cabula' vem da religião afrodescendente praticada nessa região”, contextualiza o historiador Rafael Dantas.
A forte presença quilombola na região, inclusive, inspirou boatos - preconceituosos - de que a fruta surgira após "mandinga". Nada que intimidasse os soteropolitanos de corpo fechado.
Espalhada por Salvador e Recôncavo, a fruta convexa era praticamente exclusiva a paladares baianos até a década de 1860, quando estadunidenses, como o pastor Schneider, conheceram a dita cuja. Em carta, o religioso conta de um marceneiro que chupava muito (o fruto), inspirando-o a chupar também aquela laranja doce, sem sementes e de casca grossa.
Outro conterrâneo, um correspondente do ministério de agricultura dos Estados Unidos, fez questão de contar a fofoca ao patrão, William Saunders, que imediatamente encomendou algumas mudas. O primeiro lote foi enviado, mas já chegou em Nova York "morto, seco e inútil", descreveu Sounders em seu diário.
Uma segunda leva, então, partiu do Porto de Salvador, mas desta vez um pé estava endereçado à senhora Tibbets, dona de casa que morava em Riverside, na Califórnia. Com a delícia em mãos, ela plantou, regou e poucos anos depois os frutos deram as caras.
Após degustar a laranja baiana, Tibbets se deliciou com o sabor e a capacidade comercial da coisa. O umbigo da questão apareceu justamente aí: a dona de casa julgou Bahia como nome "exótico", e preferiu dar um toque anglo-saxão, renomeando-a para “Riverside Navel” (navel é umbigo em inglês).
O re-batismo não agradou os conterrâneos, receosos de que a cidade passasse a ser conhecida por uma laranja. Eis que brotou a tal “Washington Navel Orange”, homenageando George Washington, herói da independência estadunidense, que ocorrera quase 100 anos antes.
Apaixonados pela fruta, os californianos aumentaram a plantação e exportaram-a para África do Sul, Japão e Europa. Em Salvador e adjacências ninguém fazia ideia, mas o mundo estava provando uma laranja baiana jurando que era gringa.
De imediato, a laranja gringo-baiana tornou-se fundamental para a economia californiana. “No passado, falavam que a laranja-baía era o ouro da Califórnia, mostrando a importância que esta variedade tinha", explica Orlando Sampaio Passos, pesquisador da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa).
Por isso, o já citado Archibald Shamel visitou a Bahia em 1913 para descobrir as origens da “fruta que conquistou a América”. 100 anos atrás, a discrepância já existia: enquanto por Salvador eram 14 mil hectares plantados, apenas a Califórnia tinha 40 mil – fora os outros estados.
Cem anos depois, a Bahia atingiu o bagaço. “A laranja-baía não é plantada em escala comercial na por aqui", revela Orlando. "Os maiores produtores atualmente são Espanha e África do Sul", continua, revelando que só a laranja-valência é mais plantada no mundo.
A baixa produção é refletida nas feiras e supermercados do estado, onde a fruta da terra raramente é encontrada. Se presente nas prateleiras, vem geralmente acompanhada de um valor acima das outras variedades.
O cordão umbilical entre terra-mãe e filha foi cortado após decisões comerciais dos produtores do estado, que optaram por plantar a laranja-pera. “A de umbigo não serve para fazer suco industrializado, pois estraga rápido após espremida. Essas outras variedades são melhores escolhas para produção em larga escala”, esclarece o especialista.
"O uso da laranjeira Pera na Bahia é quase absoluto. Qual o percentual? 99%, 98%, 97%. No litoral Norte, tem alguns plantios de Rubi, Pineapple e Westin. Nas outras regiões, não se conhece nenhuma menção. A laranjeira Lima é rara", aponta.
Além disso, apesar de baiana, a laranja-de-umbigo se adapta melhor aos climas temperados. “Por isso, no Brasil, ela é plantada mais no Rio Grande do Sul”, exemplifica.
Apaixonado pela Califórnia, laranja-baía e a história que as une, Orlando foi três vezes ao estado americano, sendo uma como pesquisador convidado. Lá ele se encontrou com a laranjeira plantada há 155 anos pela senhora Tibbets, que segue em pé. Ao menos, uma placa ao lado da planta conta a história, deixando claro que ela é nascida na Bahia, criada nos States.
"Nós temos que reconhecer o trabalho do americano em divulgar, criar variedades e melhorar o plantio da laranja-baía”, ressalta Orlando.