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E se a música 'Baixa do Sapateiro' não tiver sido escrita por Ary Barroso?

Versão familiar dá conta que o verdadeiro compositor é Humberto Porto, sambista baiano que se suicidou em 1943

  • Foto do(a) author(a) André Uzeda
  • André Uzeda

Publicado em 1 de dezembro de 2024 às 09:15

Ary Barroso (apenas o rosto) e Humberto Porto (com o violão)
Ary Barroso (apenas o rosto) e Humberto Porto (com o violão) Crédito: Reprodução

É na ausência de um plural que reside um possível mistério sobre a autoria de uma das canções mais exaltadas da música popular brasileira. Ao que consta na versão oficial, em 1938, o lendário compositor Ary Barroso escreveu “Na Baixa do Sapateiro” e entregou para que Carmen Miranda gravasse à época.

Foi na voz da miúda cantora luso-brasileira que a faixa se popularizou pelo mundo, indo quase parar em Hollywood – durante as filmagens da película Banana da Terra, produzida pelos estúdios Walt Disney.

Mesmo longe das telonas por um distrato comercial em cima da hora, “Na Baixa do Sapateiro” conquistou ouvidos internacionais, sendo executada em várias partes do globo, sob o cognome de “Bahia”.

Cantada por João Gilberto, Gal Costa, Dorival Caymmi, Elis Regina, Caetano Veloso, esta ainda é a segunda música mais gravada de Ary Barroso, atrás apenas do hino “Aquarela do Brasil”.

Para os mais atentos, o fato do título ser “Baixa do Sapateiro” – e não “Baixa do Sapateiros”, em referência à Avenida JJ Seabra – sempre foi um motivo de intriga, muito além da flexibilidade permitida pela licença poética.

Por trás da supressão da consoante “s”, estaria uma triste história de falência, frustração criativa, depressão, silenciamento e suicídio.

No livro sobre a “Família Taboada”, um trecho narrado pelo advogado Tarquínio Gonzaga, uma das figuras mais proeminentes da boemia do Rio Vermelho, ele conta que a música jamais foi escrita pelo mineiro Ary Barroso – mas, sim, pelo sambista baiano Humberto Porto.

Isso explicaria o sentido da letra, uma ode à Bahia, com uso de expressões tipicamente locais , como “Sinhô do Bonfim”, por exemplo.

Vale lembrar que, em 1936, Ary Barroso já havia composto “No Tabuleiro da Baiana” – uma canção que rasga elogios à nossa cultura, mas se refere ao Jesus crucificado como “Senhor do Bonfim”, grafando na sua forma mais convencional.

Uma das versões dá conta que Ary Barroso teria criado estas duas músicas – e mais “Quindins de Iaiá”, de 1941 – sem nunca ter pisado os pés no estado.

Isso só viria efetivamente a acontecer em 2 de dezembro de 1960. Data em que o vereador soteropolitano Luis Monteiro Costa sugeriu, exatamente por ocasião desta visita, para se transformar no Dia do Samba.

O sambista Humberto Porto

Nascido em Salvador, em 1908, Humberto Porto foi um dos compositores mais talentosos da sua geração. Fez músicas com Assis Valente e Herivelto Martins, além de ter sido gravado por Carmen Miranda, Dalva de Oliveira, Francisco Alves e outros grandes nomes da chamada ‘Era de Ouro’ do Rádio.

Sua canção mais célebre é “A Jardineira”, uma marchinha de carnaval de 1939, uma parceria com Benedito Lacerda. Ela foi gravada por Orlando Silva, “o cantor das multidões”, e rapidamente caiu no gosto popular naquele ano.

A própria “A Jardineira” foi alvo de reclamações de plágio, das quais Humberto Porto precisou se defender arduamente. Mas esse não é o cerne desta nossa história.

O fato é que Tarquínio Gonzaga conta que, quando Humberto Porto ainda era um sambista de pouco renome andava pela Pastelaria Globo, localizado na própria Baixa dos Sapateiros, sempre repetindo a mesma música.

“Dedilhando o seu inseparável violão, Humberto passou a cantarolar a letra toda vez que ia à pastelaria. De tanto ouvi-la, o Nelson Taboada (dono da pastelaria) chegou um dia a pedir-lhe, em tom de brincadeira: "dê um merecido descanso à morena da Baixa dos Sapateiros. Por favor, cante outras músicas!", narra Tarquínio.

“Quando foi tentar a sorte musical no Rio de Janeiro, o compositor levou na bagagem dezenas de composições, a maioria inspirada no Rio Vermelho e na Baixa dos Sapateiros. (...) Nas minhas idas ao Rio encontrava-me com o Humberto, sempre em bares e no meio dos amigos cariocas. Achava que ele estava levando uma vida cada vez mais desorganizada e tumultuada”, completa o inveterado boêmio.

Ao que Tarquínio Gonzaga recorda, a vida de Humberto Porto estava desorganizada, desde a morte do pai.

"Na última vez que estive com o querido amigo do Rio Vermelho, convidei-o para almoçar comigo. (...) Em dado momento, começamos a ouvir pelo rádio do restaurante a música "Na Baixa do Sapateiro", na voz de Sílvio Caldas. Aproveitei a oportunidade para perguntar-lhe, de chofre: O que aconteceu com a música "Na Baixa dos Sapateiros", que você gostava de cantar na pastelaria do Nelson Taboada? Eis a resposta: ‘Vendi a Ary Barroso, num dia em que precisava de dinheiro, pois estava sem um tostão no bolso! Mas ele fez alterações, colocou a

Baixa dos Sapateiros no singular e acrescentou algumas frases".

Outras evidências

Apenas o relato de Tarquínio Gonzaga, já falecido, não é suficiente para sustentar que a canção foi comprada por Ary Barroso das mãos de Humberto Porto. Entretanto, há outras evidências que ajudam a sustentar a teoria, sem nunca cravá-la em definitivo.

Uma delas é a análise da própria obra de Barroso. O jornalista Lucas Pondé lembra que, no livro '’A Canção no Tempo”, dos pesquisadores Jairo Severiano e Zuza Homem de Melo, a música ‘Na Baixa do Sapateiro’ é classificada como uma mistura do samba com o jongo – um estilo musical considerado o avô do samba, com forte presença percussiva de instrumentos afro-brasileiros.

Até a música ‘Na Baixa do Sapateiro’, tal célula rítmica ainda não tinha aparecido na obra do compositor mineiro, muito famoso pelos seus sambas-exaltação. Por outro lado, essa já era um mistura recorrente no universo musical de Humberto Porto, com canções como ‘Na Bahia’, ‘Negro Está Sambando’, ‘Pomba-Serena’ e ‘Pé de Manjericão’.

Outra pista é uma coluna do jornal carioca Gazeta de Notícias, de 29 de dezembro de 1938. Nele, há uma nota criticando Porto por cobrar 500 réis à Rádio Tupi pela execução de suas canções, “não importa que seja música em conserva ou mesmo produção de que ele já vendeu os direitos autorais”, diz trecho do periódico.

Este ponto reforça que Humberto Porto tinha a prática de vender suas músicas – ainda que quisesse depois cobrar por elas.

O professor de Direito Civil da Ufba, Rodrigo Moraes, especialista em direito autoral, explica que, mesmo que supostamente Ary Barroso tivesse mesmo comprado a letra de Humberto Porto, não teria cometido nenhuma irregularidade jurídica.

Isso porque, o Código Civil brasileiro de 1916, em vigor à época, no artigo 667, garantia que as músicas fossem comercializadas sem proteção do direito autoral.

“É muito diferente de hoje. Atualmente, o artista pode comercializar os direitos patrimoniais de sua música, ou seja, abrir mão de toda a sua parte comercial, mas continua detentor da propriedade intelectual. Até 1973, quando isso foi alterado, a venda incluía a compra do direito de criação”.

O poeta da Saudade

Se escreveu ou não ‘Baixa do Sapateiro’ – se vendeu ou não a letra para Ary Barroso –, a verdade é que Humberto Porto viveu muito pouco para ver a dimensão da sua suposta obra ou mesmo para reclamar a paternidade dela, diante de estrondoso sucesso que viria nos anos seguintes.

Em 23 de setembro de 1943, Humberto Porto tirou a própria vida, deprimido por dívidas, a morte do pai e mergulhado em uma decepção amorosa arrebatadora.

Esta coluna é dedicada ao amigo Lucas Pondé, amante da música e das letras, e herdeiro sanguíneo do samba de Humberto Porto.