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André Uzeda
Publicado em 1 de dezembro de 2024 às 09:15
É na ausência de um plural que reside um possível mistério sobre a autoria de uma das canções mais exaltadas da música popular brasileira. Ao que consta na versão oficial, em 1938, o lendário compositor Ary Barroso escreveu “Na Baixa do Sapateiro” e entregou para que Carmen Miranda gravasse à época. >
Foi na voz da miúda cantora luso-brasileira que a faixa se popularizou pelo mundo, indo quase parar em Hollywood – durante as filmagens da película Banana da Terra, produzida pelos estúdios Walt Disney. >
Mesmo longe das telonas por um distrato comercial em cima da hora, “Na Baixa do Sapateiro” conquistou ouvidos internacionais, sendo executada em várias partes do globo, sob o cognome de “Bahia”. >
Cantada por João Gilberto, Gal Costa, Dorival Caymmi, Elis Regina, Caetano Veloso, esta ainda é a segunda música mais gravada de Ary Barroso, atrás apenas do hino “Aquarela do Brasil”. >
Para os mais atentos, o fato do título ser “Baixa do Sapateiro” – e não “Baixa do Sapateiros”, em referência à Avenida JJ Seabra – sempre foi um motivo de intriga, muito além da flexibilidade permitida pela licença poética.>
Por trás da supressão da consoante “s”, estaria uma triste história de falência, frustração criativa, depressão, silenciamento e suicídio. >
No livro sobre a “Família Taboada”, um trecho narrado pelo advogado Tarquínio Gonzaga, uma das figuras mais proeminentes da boemia do Rio Vermelho, ele conta que a música jamais foi escrita pelo mineiro Ary Barroso – mas, sim, pelo sambista baiano Humberto Porto. >
Isso explicaria o sentido da letra, uma ode à Bahia, com uso de expressões tipicamente locais , como “Sinhô do Bonfim”, por exemplo.>
Vale lembrar que, em 1936, Ary Barroso já havia composto “No Tabuleiro da Baiana” – uma canção que rasga elogios à nossa cultura, mas se refere ao Jesus crucificado como “Senhor do Bonfim”, grafando na sua forma mais convencional.>
Uma das versões dá conta que Ary Barroso teria criado estas duas músicas – e mais “Quindins de Iaiá”, de 1941 – sem nunca ter pisado os pés no estado. >
Isso só viria efetivamente a acontecer em 2 de dezembro de 1960. Data em que o vereador soteropolitano Luis Monteiro Costa sugeriu, exatamente por ocasião desta visita, para se transformar no Dia do Samba. >
O sambista Humberto Porto>
Nascido em Salvador, em 1908, Humberto Porto foi um dos compositores mais talentosos da sua geração. Fez músicas com Assis Valente e Herivelto Martins, além de ter sido gravado por Carmen Miranda, Dalva de Oliveira, Francisco Alves e outros grandes nomes da chamada ‘Era de Ouro’ do Rádio.>
Sua canção mais célebre é “A Jardineira”, uma marchinha de carnaval de 1939, uma parceria com Benedito Lacerda. Ela foi gravada por Orlando Silva, “o cantor das multidões”, e rapidamente caiu no gosto popular naquele ano.>
A própria “A Jardineira” foi alvo de reclamações de plágio, das quais Humberto Porto precisou se defender arduamente. Mas esse não é o cerne desta nossa história.>
O fato é que Tarquínio Gonzaga conta que, quando Humberto Porto ainda era um sambista de pouco renome andava pela Pastelaria Globo, localizado na própria Baixa dos Sapateiros, sempre repetindo a mesma música.>
“Dedilhando o seu inseparável violão, Humberto passou a cantarolar a letra toda vez que ia à pastelaria. De tanto ouvi-la, o Nelson Taboada (dono da pastelaria) chegou um dia a pedir-lhe, em tom de brincadeira: "dê um merecido descanso à morena da Baixa dos Sapateiros. Por favor, cante outras músicas!", narra Tarquínio.>
“Quando foi tentar a sorte musical no Rio de Janeiro, o compositor levou na bagagem dezenas de composições, a maioria inspirada no Rio Vermelho e na Baixa dos Sapateiros. (...) Nas minhas idas ao Rio encontrava-me com o Humberto, sempre em bares e no meio dos amigos cariocas. Achava que ele estava levando uma vida cada vez mais desorganizada e tumultuada”, completa o inveterado boêmio.>
Ao que Tarquínio Gonzaga recorda, a vida de Humberto Porto estava desorganizada, desde a morte do pai. >
"Na última vez que estive com o querido amigo do Rio Vermelho, convidei-o para almoçar comigo. (...) Em dado momento, começamos a ouvir pelo rádio do restaurante a música "Na Baixa do Sapateiro", na voz de Sílvio Caldas. Aproveitei a oportunidade para perguntar-lhe, de chofre: O que aconteceu com a música "Na Baixa dos Sapateiros", que você gostava de cantar na pastelaria do Nelson Taboada? Eis a resposta: ‘Vendi a Ary Barroso, num dia em que precisava de dinheiro, pois estava sem um tostão no bolso! Mas ele fez alterações, colocou a>
Baixa dos Sapateiros no singular e acrescentou algumas frases".>
Outras evidências>
Apenas o relato de Tarquínio Gonzaga, já falecido, não é suficiente para sustentar que a canção foi comprada por Ary Barroso das mãos de Humberto Porto. Entretanto, há outras evidências que ajudam a sustentar a teoria, sem nunca cravá-la em definitivo.>
Uma delas é a análise da própria obra de Barroso. O jornalista Lucas Pondé lembra que, no livro '’A Canção no Tempo”, dos pesquisadores Jairo Severiano e Zuza Homem de Melo, a música ‘Na Baixa do Sapateiro’ é classificada como uma mistura do samba com o jongo – um estilo musical considerado o avô do samba, com forte presença percussiva de instrumentos afro-brasileiros.>
Até a música ‘Na Baixa do Sapateiro’, tal célula rítmica ainda não tinha aparecido na obra do compositor mineiro, muito famoso pelos seus sambas-exaltação. Por outro lado, essa já era um mistura recorrente no universo musical de Humberto Porto, com canções como ‘Na Bahia’, ‘Negro Está Sambando’, ‘Pomba-Serena’ e ‘Pé de Manjericão’.>
Outra pista é uma coluna do jornal carioca Gazeta de Notícias, de 29 de dezembro de 1938. Nele, há uma nota criticando Porto por cobrar 500 réis à Rádio Tupi pela execução de suas canções, “não importa que seja música em conserva ou mesmo produção de que ele já vendeu os direitos autorais”, diz trecho do periódico. >
Este ponto reforça que Humberto Porto tinha a prática de vender suas músicas – ainda que quisesse depois cobrar por elas. >
O professor de Direito Civil da Ufba, Rodrigo Moraes, especialista em direito autoral, explica que, mesmo que supostamente Ary Barroso tivesse mesmo comprado a letra de Humberto Porto, não teria cometido nenhuma irregularidade jurídica.>
Isso porque, o Código Civil brasileiro de 1916, em vigor à época, no artigo 667, garantia que as músicas fossem comercializadas sem proteção do direito autoral. >
“É muito diferente de hoje. Atualmente, o artista pode comercializar os direitos patrimoniais de sua música, ou seja, abrir mão de toda a sua parte comercial, mas continua detentor da propriedade intelectual. Até 1973, quando isso foi alterado, a venda incluía a compra do direito de criação”. >
O poeta da Saudade>
Se escreveu ou não ‘Baixa do Sapateiro’ – se vendeu ou não a letra para Ary Barroso –, a verdade é que Humberto Porto viveu muito pouco para ver a dimensão da sua suposta obra ou mesmo para reclamar a paternidade dela, diante de estrondoso sucesso que viria nos anos seguintes.>
Em 23 de setembro de 1943, Humberto Porto tirou a própria vida, deprimido por dívidas, a morte do pai e mergulhado em uma decepção amorosa arrebatadora. >
Esta coluna é dedicada ao amigo Lucas Pondé, amante da música e das letras, e herdeiro sanguíneo do samba de Humberto Porto.>