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João Gabriel Galdea
Publicado em 10 de setembro de 2023 às 05:01
“Nem Monet, nem Manet, nem mané”, define (ou não) Carlos Kahan, 64 anos, o seu sincretismo artístico. De Da Vinci a Botticelli, de Carybé a Edmundo Simas, aplica de tudo um pouco na forma, em sua construção como artista plástico autodidata, mas no conteúdo as variações são poucas: personagens negras do Norte da África, da Bahia, do Brasil, que das portas de um velho sobrado no Pelourinho abrem janelas para o mundo nos enxergar melhor, através dos registros de turistas.
A primeira modelo da vida do pintor e das portas mais instagramáveis de Salvador, segundo o paulista de Embu das Artes que viveu 10 anos por aqui, era uma conterrânea sua chamada Tereza, hoje sem notícias de seu paradeiro. É com ela que Kahan inicia a série de painéis no casarão que serve como entrada da antiga comunidade da Rocinha, atualmente em reforma, e que essa semana foi parar numa peça de divulgação do filme ‘Ó Paí Ó 2’, com Lázaro Ramos, previsto para estrear em novembro.
Os efeitos da crise gerada pela pandemia e um certo abandono do Pelourinho o tiraram de lá, recentemente, mas ele promete voltar em janeiro para matar saudade e retocar suas obras de arte, que já se espalham por outros pontos do Centro Histórico. A primeira pincelada, aliás, não foi nem nas passagens dignas de foto pro Insta, mas em um painel na rua Maciel de Baixo, do outro lado, ponto de partida para as quatro portas do casarão azul, pintadas em meados de 2016.
“Eu tinha feito um trabalho anterior que está ainda hoje na rua paralela, que é a Maciel de Baixo. Quando eu fiz esse primeiro trabalho eu não estava esperando repercussão nenhuma, mas me surpreendeu a reação das pessoas. E aí o órgão que cuida do patrimônio histórico abriu espaço para a pintura desse casarão [da Rocinha]”, relembra.
A princípio, chamou amigos grafiteiros para pintar o local, mas a turma só topava se rolasse uns caraminguás. “São quatro portas, e eu falei pra cada um pegar uma e fazer um trabalho ali. Achei que ia ficar legal, só que aí eles queriam ser remunerados [pelo poder público]. Entendi, mas isso seria muito burocrático. Ainda argumentei que aquilo ali era um outdoor permanente na cidade, sem pagar nada praticamente, mas não acharam interessante. Então eu fiz a primeira e fiz as outras também”, recorda.
A fachada além de projetar o trabalho do artista, também virou propaganda localmente. “Porque antes eu vi aquele prédio, ali pertinho de Jorge Amado [a fundação], e percebi que era a passagem de todos os turistas, né? E eu tava pensando em pintar aquela porta, pra dar um aspecto melhor ali. Depois, fui convidado pra fazer um trabalho lá no Mercado São Miguel e no Elevador do Taboão, pela prefeitura”, completa sobre o investimento e, digamos, o retorno.
Figuras grandes
O tamanho das personagens dos painéis e quadros de Kahan, quase sempre grandes, tem influência de uma jogada (ou derrapada) do destino, ocorrida há exatos 30 anos. “Eu sofri um acidente de carro, no qual eu quase morri, em 1993. Nesse acidente eu perdi a visão do olho esquerdo, e por isso uso um tapa-olho. Eu já pintava desde 1989 os temas afros, mas como eu perdi uma visão e fiquei deficiente da única que tenho, com a qual enxergo apenas 36%... Eu tinha dificuldade em pintar as figuras pequenas, tive a necessidade de aumentá-las”.
E essa nem foi a maior dificuldade da vida Kahan, que viveu nas ruas dos 14 aos 16 anos, em São Paulo. Sua história de vida, com episódios bastante sofridos mas outros também bastante interessantes – são nove casamentos, cinco filhos e peregrinações por várias cidades do país – em breve vai virar livro. Um amigo está escrevendo sua biografia, ainda sem previsão de lançamento. O capítulo sobre a Bahia, certamente, será dos maiores, afinal, a herança africana de Salvador o arrebatou ao ponto de sonhar em devolver ao Centro Histórico a relevância artística e cultural de outros tempos.
Outra coisa grande a relatar é o reconhecimento nas redes sociais de seu esforço, suas obras. “As pessoas que perceberam que tem um endereço de Instagram ali [nas portas], e meu nome bem legível, me marcam [na rede social]. Só disso aí já são mais de 200 mil compartilhamentos”, contabiliza no perfil @carlos_kahan.
Inspirações
Em boa parte das fotos, ou melhor, das pinturas, quem aparece é a mesma Tereza, filha de baianos, assim como o próprio Carlos Kahan – seu pai, Domingos Bispo, é natural de Alagoinhas, no nordeste do estado.
“Tereza é uma figura que sempre me acompanha. Às vezes ela é repetida em vários trabalhos. A gente quando pinta um retrato, grava os traços, e eu sempre recorro a Tereza, uma negra muito bonita, hoje já mais velha, e ela foi o primeiro retrato de uma pessoa negra que eu pintei pessoalmente”, explica sobre a modelo. Já sobre os trajes, eles costumam vir do outro lado do Atlântico.
“Costumo pintar etnias africanas do norte; pego os adereços e crio as personagens. Então, é por isso que eu faço esse estudo da cultura deles, como por exemplo os fulas, pra saber o que fazem, o que usam como ornamento, e eu ilustro isso depois da forma que eu criar. São pessoas aleatórias, mas tem a figura que é constante, porque essa foi minha primeira modelo”. Cadê Tereza? Por onde anda nossa Tereza?
Para encontrá-la em quadros do artista, que custam entre R$ 900 e R$ 6.800 [embora possa chegar a 22 mil dólares, como uma obra comercializada nos anos 1990], basta pintar, ou seja, aparecer na galeria de Washington Silva, na mesma rua Maciel de Baixo, bem em frente ao Solar Ferrão.