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André Uzeda
Publicado em 9 de março de 2025 às 05:00
Até meados dos anos 1980, era possível avistar na praia da Pituba, na altura do finado Clube Português, os destroços de uma embarcação que, na falta de dados mais precisos sobre a razão do encalhe, a engenhosidade popular preencheu as lacunas ao bel-prazer. >
Os escombros estavam presos nos arrecifes, numa distância relativamente próxima dos banhistas mais intrépidos. Alguns diziam ser os restos de uma aeronave que perdeu o prumo e, na tentativa de um pouso de emergência, chocou-se violentamente nos mares soteropolitanos – matando tripulantes e passageiros.>
A tese mais difundida, porém, era outra. E teve longa duração no imaginário popular justamente porque encontrava lastro na realidade dos fatos. Dizia-se que aquelas ruínas, carcomidas pelo salitre e pelo refugo das marés, eram de um submarino da frota nazista, de Adolf Hitler (1889-1945), afundado em território baiano. >
Antes da Segunda Guerra Mundial ser deflagrada, a Alemanha desenvolveu uma série de submarinos de guerra – o que descumpria frontalmente o Tratado de Versalhes, que impunha ao país, derrotado na Primeira Grande Guerra, a restrição de constituir um novo exército. >
Alimentado pelo sentimento de revanchismo e pela leniência das demais nações, Hitler armou novamente a Alemanha, dando especial importância para os Unterseeboot, ou U-boot, como ficaram conhecidos os submarinos do Terceiro Reich.>
Em agosto de 1942, a guerra já estava comendo no centro, quando o Brasil anunciou sua entrada no conflito, apoiando os Aliados – grupo formado por Inglaterra, França, Estados Unidos e União Soviética. Do outro lado, Alemanha, Itália e Japão formavam o Eixo.>
Getúlio Vargas, então presidente do Brasil, oscilou muito até decidir encarar a peleja. Suas inclinações ideológicas pendiam para o regime totalitário do Nazi-Fascismo, mas seu pragmatismo político farejava que era possível barganhar um bom acordo com os Estados Unidos – e até a neutralidade poderia ser lucrativa. Mas aí veio o bombardeiro na costa brasileira mudando o rumo da prosa.>
Navios mercantes do país foram torpedeados no Norte e Nordeste, resultando na morte de 1.074 pessoas e no naufrágio de 36 embarcações. Um deles foi o vapor Aníbal Benévolo, afundado na Bahia, com 154 vítimas fatais. Outro ataque na linha costeira do estado foi a destruição do vapor Itagiba, resultando em 36 mortes.>
Durante muito tempo correu uma teoria da conspiração de que os ataques, na verdade, haviam sido provocados por submarinos dos EUA, travestidos da Kriegsmarine (a marinha nazista) para forçar Vargas a aderir aos Aliados.>
O historiador Luiz Antônio Pinto Cruz publicou, em 2017, uma tese de doutorado pela Universidade Federal da Bahia na qual detalha os ataques dos submarinos alemães na costa da Bahia e de Sergipe. >
“A maioria dos navios mercantes foi atacada em mar aberto e distante do continente. Contudo, alguns torpedeamentos navais se deram tão próximo à costa e à luz do dia, que podiam ser vistos da praia. Os habitantes das ilhas do Caribe, e de Morro de São Paulo, na Bahia, conseguiram ouvir uma forte explosão seguida pelo surgimento de uma grossa coluna de fumaça e pelo rápido desaparecimento do navio na linha d‘água”, escreve na tese.>
Pinto Cruz também pontua como estes acontecimentos marcaram definitivamente quem presenciou tais fatos. “Era um espetáculo de intensa dramaticidade, que marcou a memória coletiva dos praianos. Estes nunca se esqueceram do que testemunharam”.>
Não há registros de ataques nazistas a navios perto da Pituba. E nem de um possível revide brasileiro aos poderosos U-boot por lá. Muito provavelmente a lenda foi alimentada pois a lembrança do torpedeamento na costa baiana ainda era uma memória muito viva nos anos 1980. >
Para efeito de comparação, quem viveu aquela década, estava temporalmente mais próximo da Segunda Guerra (35 anos de distância) do que dos dias atuais, quando somam-se 45 anos de diferença.>
Hoje, não é mais possível ver os destroços da embarcação misteriosa. Os escombros foram corroídos e arrastados para dentro do mar, levando junto a verdadeira história. O Clube Português também não existe mais. Foi demolido em 2007.>
Das velhas quinquilharias que abrem esta reportagem, a única coisa que sobrou foi justamente a mais nefasta: o nazismo. O mundo tem assistido inerte ao avanço de grupos extremistas, xenófobos e radicais, submergindo das profundezas oceânicas e ameaçando torpedear a ordem democrática. >
Esta coluna é dedicada a Carlos Augusto Neves da Rocha, Carlucho, antigo morador da Pituba e intrigado com a história da embarcação na Pituba.>