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Rafson Ximenes
Publicado em 21 de outubro de 2024 às 05:00
Um ônibus foi incendiado no Bairro da Paz. A população local está há alguns dias sem transporte coletivo. Fatos reais e impactantes como esse tem o poder de reforçar o sentimento de insegurança que encontra bases no dia a dia, embora seja amplamente potencializado por discursos sensacionalistas. Mas, o fato é que enquanto for considerado razoável ter medo de estar em qualquer lugar, teremos um grave problema. >
Há várias razões estruturais para que haja mais insegurança no Brasil que em outros países. Causas históricas, como o prolongado período de escravidão e a ausência de reforma agrária; causas sociais, como a desigualdade e o déficit entre as expectativas e as possibilidades de aquisição de bens materiais e imateriais; causas culturais, como o machismo, o racismo, a homofobia, o culto à violência e o consumismo arraigados que tornam vidas e corpos descartáveis, autorizando os ataques contra eles.>
Talvez, contudo, o motivo maior seja a dificuldade de se desvencilhar dos discursos fáceis, rasteiros e falsos, quando o tema é debatido. Raramente é possível identificar alguma política de segurança pública e mesmo alguma manifestação política realmente inspirada em pesquisas sérias da área. É mais fácil seguir o senso comum e repetir bobagens.>
O padrão é se apresentar como uma pessoa valente, disposta a ser dura, inflexível (violenta) contra a criminalidade. Anuncia-se uma luta contra pessoas más, diferentes de nós. Cria-se expressões como “mundo do crime”, “mundo das drogas”, como se denunciássemos um povo estrangeiro que nos invadiu. Por fim, basta dizer que falta alguém macho o suficiente para enfrentar os monstros.>
Governos de direita e de esquerda repetem os mesmos discursos e apresentam as mesmas soluções desde que o mundo é mundo. Desafio quem consiga demonstrar com dados que um proponha leis mais brandas ou mais rigorosas que o outro quando está no poder. A cegueira em matéria de segurança pública não tem partido. Todos têm agido de forma igual, inclusive no oportunismo para criticar os adversários ou propor leis inócuas, à custa da vida de pessoas pobres. >
A história do nosso direito penal é a história do aumento de penas, da criação de regimes mais gravosos e da rotulação de mais crimes como hediondos. Nosso processo penal é um dos menos garantistas da América do Sul. Sabe quando uma dessas práticas conseguiu reduzir a criminalidade no Brasil? Nunca. Engana-se a população propondo novos crimes, penas mais altas e processos penais em que, cada vez mais, o acusado seja punido antes mesmo de poder se defender. >
Um exemplo de bode expiatório são as audiências de custódia, instituto que impõe apenas que alguém preso antes do julgamento seja apresentado pessoalmente a um juiz, para que ele avalie se a prisão foi feita de forma legal, se aquela pessoa deve permanecer presa antes do fim do processo e se há sinais de tortura. Mente-se que “o problema da segurança é que as audiências de custódia soltam muita gente acusada de crimes gravíssimos”, “criminosos frequentemente são soltos e presos novamente no dia seguinte”. Discurso tão fácil, quanto comprovadamente falso.>
A Defensoria Pública da Bahia acabou de publicar uma extensa pesquisa, que analisou 36.680 audiências de custódia por 08 anos. Em cada 10 casos, somente 6 pessoas são soltas. Se a regra em qualquer país civilizado é o acusado ser presumido inocente e poder se defender em liberdade, estamos no limite mínimo. Em 2023, apenas 4% dos flagrantes foram de alguém que já havia sido preso no mesmo ano. Delitos mais chocantes como crimes sexuais, homicídios e latrocínios não chegam a 2% das audiências de custódia e raramente deixam de ter as prisões provisórias mantidas. Nem 1/5 das prisões se referem a crimes com uso de arma de fogo. >
A pesquisa ainda aponta pelo menos uma provável causa para a sensação de insegurança mais fácil de enfrentar do que aquelas estruturais elencadas no início do texto: Menos de 10% das prisões foi efetuada pela Polícia Civil. Isso significa que temos investigado, prevenido e planejado pouco. Como em qualquer atividade, ao agir desse modo, a chance de erros é maior. >
Será que alguém está interessado em ler as pesquisas? O que dá mais publicidade, melhorar a capacidade de desvendar e produzir provas adequadas ou simplesmente propor uma lei prometendo penas exacerbadas? As leis penais populistas e os discursos falaciosos que prometem soluções mágicas não contribuem em nada para melhorar a segurança. Só atrapalham, porque cegam e impedem a busca por saídas efetivas. Todo mundo direciona esforços para lutar contra as sombras e esquece o trabalho concreto. >
Líderes do campo progressista e conservador travam uma irresponsável disputa sobre quem consegue se vender como mais capaz de tomar medidas que todos os especialistas sabem que não funcionam e de criar bodes expiatórios. Pior, contaminam quem deveria ser técnico e exercer o controle. Muitas pessoas tem tido as vidas destruídas por serem vítimas de crimes, vítimas de condenações injustas, vítimas de penas desproporcionais, vítimas de antecipações de culpa e vítimas de execuções por causa dessa atitude leviana. Precisávamos de um pacto de honestidade. A Segurança Pública deveria ser tratada com mais seriedade.>
Rafson Ximenes é defensor público>