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Publicado em 17 de dezembro de 2024 às 11:52
Havia, na minha fuça, um aviso de perigo do tamanho de um piano, mas eu o ignorei com esse coração incapaz de aprender uma única lei de Murphy sobre o lado ruim da vida. Há aquela regra sua que diz: “tudo o que puder dar errado, dará”. Se isso vale até para o lado do pão com geleia que encontra o chão na queda, vale para a minha vida.
Sexta-feira passada, o canto de meu amigo Kalu me despertou de dentro do pensamento, como uma canção de ninar pelo avesso. Abracei esse sinal como se fosse meu santo a gritar que é forte, que meu amigo querido ia sobreviver. Semanas antes, a notícia de seu AVC saiu da boca trêmula da minha irmã Júlia, sua melhor amiga, por videochamada.
Eu nem fiquei triste: só pude imaginar um cenário em que ele precisasse batalhar na reabilitação para voltar à plena forma e mais nada. “Relaxe, Ju: quase todo mundo se recupera de um derrame”, falei. Não sei de onde tirei tanta certeza. Minha irmã enquadrou-me na hora: “e se ele não voltar a ficar bem? E se não puder mais tocar um instrumento, seu meio de vida?”.
Ora, seria impossível ele não voltar a tocar. Aqueles dedos não dariam sossego ao juízo de uma fisioterapeuta até conseguirem afinar, de novo, a bucha de sena das cordas de um violão. A persistência é o que leva a gente a conseguir o que quer e música era a sua própria vida. A gaiatice de Kalu resistiria aos problemas de mobilidade e fala e ele faria todo mundo rir de novo com a famosa “carinha do verão”.
Essa marca dele, uma careta, que temporariamente ficaria meio torta por conta da paralisia vascular, certamente se desdobraria em mais uma piada sua como fez o folião amputado na altura do ombro direito que viralizou na internet usando, no carnaval do Rio, uma fantasia com uma placa escrito “João sem braço”. Kalu era desses.
Eu pararia com a besteira de evitar a festa do Forró da Gota por não saber dançar e sempre sobrar na pista, invejosa dos que bailam; meu único par, uma cerveja verde, ficaria de canto; meus dois pés esquerdos treinariam passos de dança para o show de volta aos palcos - apresentação tão épica a ponto de só caber na Concha Acústica - e eu rodopiaria na frente do palco com algum menino lindo.
Enquanto eu tinha esses devaneios, minha mãe emulou saudades de ter uma adolescente em casa, arrumou o meu quarto à minha revelia e achou uma camisa rosa toda acabada que quis jogar fora. “Mãe, tá maluca? Essa camisa, não”, reagi. A peça da Cavalera, loja que nem deve mais existir, foi dada por minha dinda há mais de duas décadas e só sairá de perto de mim contra a minha vontade: em caso de perda ou roubo, ou quando se desintegrar.
Ela tem mil furos, mas ainda a uso - agora, inclusive, está em mim. Para explicar o tamanho da história desta camiseta em cuja estampa Bon Jovi usa uma blusa com a foto de Reginaldo Rossi, contei a minha mãe que Kalu já a vestiu. Há uns quinze anos ou mais, eu procurava essa roupa feito louca para sair e deduzi, repleta de fúria, que Júlia a levara escondido em sua viagem ao Capão.
Quem tem irmã sabe que subtrair suas vestes é deliberar a terceira guerra. Por uma rede social perguntei, com a bile que emanava do fígado, onde diabos estava a minha blusa. Horas, talvez dias depois, chega uma mensagem de Kalu. Vinha com uma foto. Ele estava todo apertadinho dentro de minha camiseta, numa pose hilária, de frente para um precipício da Chapada Diamantina.
Enviava-me palavras engraçadas de pedido de perdão; precisara usar a cor rosa para reforçar para alguém sua sexualidade inabalável pela tonalidade de uma roupa e a única peça que encontrou foi a minha camiseta, que estava pendurada no varal enquanto eu dormia. “Achei que era pano de chão”, arrematou a mentira deslavada que tentava evitar a briga de duas irmãs por roupa. Conseguiu.
A vida com Kalu era de ter câimbra na bochecha de tanto rir, mas, um dia, a sexta-feira de um dia 13 de dezembro, data sempre tão simbólica para meu amigo forrozeiro por comemorar o nascimento de Luiz Gonzaga, viria bagunçar o calendário de nossas existências para a eternidade. Um “sextou” para tornar tudo o que conecta Kalu ao que vem debaixo do barro do chão de forma ainda mais forte.
“Jô, Thiago Kalu morreu!”, gritou minha mãe da sala enquanto eu calçava o salto no quarto. Eu estava já com um pé fora de casa, a caminho do Roots Beer Truck, de meu compadre Pedro, para degustar suas cervejas de barril e as melhores empanadas argentinas que já comi. Ao ouvir a frase de minha mãe, uma fisgada no peito transfundiu meu sangue para um ralo imaginário que se abriu. Depois, fui descontar nela, infantil que sou para lidar com a morte.
“Como é que você me dá uma notícia dessas como quem manda não esquecer o casaco, mãe?”, revoltei-me diante da vitamina de cicuta que bebi pelos ouvidos. Com muito respeito para entender minha reação, minha mãe nada mais falou. Em silêncio, beijei-lhe o rosto e saí de casa com a cabeça enforcada pelo sétimo anel de Saturno.
Quando, há anos, morreu Lucas Sande, membro dileto dessa mesma turma que agora chora, dei a notícia a meu pai de forma errada também. Fui ao seu quarto tão aos prantos que só consegui falar: “ele morreu, ele morreu”. “Quem, quem, quem?”, perguntava meu pai, com aparente calma. O coração dele deve ter ido à Lua no pensamento em seus outros filhos. Quando consegui dizer quem morrera, ele, primeiro, suspirou de alívio. Depois, chorou.
Mãe, desculpa pelos modos. Eu receberia qualquer notícia dos teus lindos lábios. É que a morte acaba comigo. Você sabe como sou contra ela. Que eu tenho tanto medo de morrer que não terei filhos só para não ter que explicar que eles vão morrer também. Eu te dei a notícia de vovó e ensaiei as palavras suando para te dizer da forma mais inócua. Eu não nasci para ver o fim.
Descontraio ao lembrar que minha mãe fez igual ao filme “Os descendentes”, obra americana mediana em que George Clooney é um havaiano que volta para casa depois de saber que sua mulher teve morte cerebral ao mesmo tempo em que se descobriu corno. Sem norte, ele encontra a filha adolescente na piscina de casa e dá a notícia do falecimento como minha mãe fez, meio de qualquer maneira, sem pensar.
A garota dá um mergulho sofrido, soca a água e quando sai, grita para o pai: “Por que você tinha que me contar quando eu estava na piscina, brincando?”. A vida imita a arte: ela sai de cena como eu, pisando duro, cheia de ódio, na vã tentativa de adiar o arrebatamento daquela horrível notícia, como se rosnar para o mensageiro amenizasse os efeitos da bomba de hidrogênio que explode em nossa cara quando vem uma morte precoce.
Mas, de volta à sexta-feira em que Kalu partiu. Uma parte de mim quis se entregar ao luto, borrar a maquiagem e entrar nos lençóis como um bebê sortudo que pôde voltar ao útero. A outra parte era uma Joana mais envelhecida que dizia: “vai-te embora para teu compromisso e engrossa logo esse cangote, que no vídeo-game da vida, cada fase fica mais difícil”. Respirei fundo e saí.
Thiago Kalu morre antes dos quarenta anos como um dos únicos poetas populares de que realmente gosto. Ele cuidava de métrica, rima e entregava tudo o que ultimamente se ignora, como bom gosto. Dá para ver que sua obra resulta de suor para pôr as melhores palavras na mais precisa ordem. Em pouquíssima gente eu reconheço esse esforço necessário e me sinto, agora, muito mais sozinha.
Só vejo o povo lavrar enigmas, usar termos desconhecidos para pagar de bacana ou não ter o cuidado de encaixar as palavras mais “finas” num contexto que dê chances ao leitor de deduzir o que aquilo quer dizer, antes de consultar o dicionário. Nada contra dicionários - os amo -, mas o escritor não deve trabalhar para desafiar seu leitor a usar um. O texto deve bastar. E o de Kalu bastava.
Nem na esteta poesia deve-se buscar o “belo”: a grande sacada é perseguir o “preciso”, e isso resumia os enxutos versos do meu amigo. Os sinônimos mais fiéis e a lavra mais simples devem nortear tudo, do bilhete à Bíblia; a escrita tem que ser sucinta e direta; ninguém quer ler a transcrição de um devaneio; o concreto cai melhor, quase sempre. Kalu conseguia fazer tudo isso.
Não me acho melhor do que quem não me agrada - eu também odeio quase tudo o que escrevo. Só continuo a publicar porque a outra coisa que sei fazer é crochê, que dá ainda menos dinheiro. Por rejeitar quase tudo, desenvolvo obsessões por obras que me encantam, como por aquela música de Kalu que me persegue desde que me acordou, na manhã de sexta:
Araçá vermelha
É a goiaba
Pé de goiaba
É goiabeira
Doce da feira
É goiabada
E goiabice
É quando a gente
Faz besteira.
Diferente de uma música chata que gruda na cabeça contra nossa vontade e o resto é só fé, só fé, só fé, essa é o moto contínuo de um mantra impossível de se enjoar. Ah! Como eu queria, em vez de desfiar este monólogo em letras pretas, conversar com Kalu para descobrir se ele pensava como eu.
Na pandemia, quando tudo era transmissão vexatória ao vivo e clausura, Kalu tocou essa música para mim ao conhecer uma história de goiabice antiga que protagonizei em uma crônica. Conto, no texto, que meu amigo Felipe vai até a minha mesa, apanha um cinzeiro, começa a examiná-lo e, em seguida, pergunta-me se ele é imaginário.
Fico paralisada com a pergunta, sem saber o que responder. Sou literal: quando tinha seis anos e minha mãe me contou que eu teria um meio-irmão, perguntei-lhe se ficaria com as pernas ou a parte de cima. Mas agora tínhamos quase trinta anos: o que Felipe havia tomado para achar que aquele objeto que ele tocava não existia? Oxe!
“Amigo”, falei, devagar, depois de intermináveis segundos: “o cinzeiro… é real!”. O queixo dele caiu diante de minha lerdeza. Felipe só queria saber se o objeto era da loja Imaginarium, mas minha cabeça enquadrou a palavra no contexto mais impossível. Kalu amou a história. Há uns anos, conheci “Menina goiaba”, de Gil; pensei em Kalu na hora, mas não mandei mensagem perguntando se ele conhecia por esquecimento.
Ele deveria conhecer essa, afinal, era muito próximo de minha gêmea Lígia e do meu amigo deus da música Átila Santana, dois “dicionários de Gil”. No domingo, Átila escreveu palavras maravilhosas em um texto de despedida que deu um intervalo às lágrimas da gente. Lembrou que, nos momentos mais urgentes, Kalu só respondia às coisas com “de noite” ou “de tarde”:
- Ô Kalu, cadê o repertório?
- De tarde!
- Oxe rei, você é abestalhado?
- De noite!
Noves fora o fenômeno que era no forró, Kalu foi um dos talentos proporcionalmente menos ovacionados que já vi nas outras áreas. A publicidade de Salvador devia tributar o seu gênio de redator e designer de primeira em um outdoor. Seu disco “Amaralina” é um daqueles tesouros que os escafandristas do futuro devorarão rezando.
Quem o conheceu e não se lembra da música que parece uma declaração de amor, mas que, no refrão, revela a que veio: “ô Petrobras, patrocina aí! Ô Petrobras, já cansei dos festivais!”. Era hilário. Genial. Mas pouca coisa supera o dia em que Kalu encontrou eu e Lígia a ensaiar nossa estreia na discotecagem.
Era o primeiro aniversário do Baile Esquema Novo, festa de música brasileira que sacudiu a segunda década deste século em Salvador. “E qual é o nome de guerra de vocês?”, quis saber Kalu. “DJs Rizerio”, respondemos, vazias de convicção. Sem precisar de um segundo, ele disparou: “vocês são as DJÊMEAS!” e nos batizou para sempre.
Gonçalo Silva Junior, meu querido editor, fala que grandes talentos não vingam na Bahia, como que para me convencer de que eu sou um e que devo juntar-me aos sudestinos. Sinto que isso aconteceu com Kalu. É indecente que sua obra só seja lembrada na contribuição que deu ao xote e ao baião. Kalu era completão. Era do samba, do rock, do côco, da bossa, do brega… De todos.
Mas, pensando bem, Kalu e o forró eram mesmo uma simbiose diferente e eu não posso negar. Ele era um dos únicos líderes de banda que conheço que toca forró o ano inteiro, e não para matar o cachê temporário de junho. Isso fala muito sobre o compromisso e a consistência de um artista com o seu projeto.
A Secretaria de Cultura do Estado da Bahia (Secult), que ignorou a urgência de promover shows da Forró da Gota, uma banda de repertório autoral, por todos esses anos, se pronunciou em suas redes. “Precisou morrer para ter a atenção de vocês?”, colocou Alexandre Espinheira, colega de banda de Kalu, na postagem da Secult. Já dizia um finado sambista: “me dê as flores em vida”.
GarreAinda no sábado, véspera do enterro, fui a um show com minha tia Teca e foi impossível evitar conversar sobre Kalu. Prosaicamente, ela me informa que Daniel, ou Dandê Bahia, amigo menos próximo de mim esses tempos do que eu queria, mas inteiramente inquilino do meu coração, faleceu há alguns meses, vítima de dengue. Ela não sabia que eu não sabia. O show acabou naquele instante para mim.
A única coisa que meus olhos passaram a ver foram os momentos exclusivamente ótimos que passei com esse amigo. Nós dois nos conhecendo na JAM no MAM e eu dando-lhe uma dica sobre como fazer um foco melhor na câmera. Na sua doce casa, em Itapuã, onde aprendi a fumar extração de artista. Como companheiro de minha eterna parceira do jornalismo, Flora. Tocando por aí sua música linda. Que merda! Por que ele também?
Ao subir os degraus do Teatro Castro Alves com o salto em que mais confiava - nunca me deixou em apuros, até aquela noite -, lembrei que perdi outro amigo músico esse ano, Serafim Martinez, e dei um jeito no joelho esquerdo. O peso nos ombros de uma notícia ruim seguida de outra pareceu cobrar a conta. Quente, meu sangue não deixou-me perceber o quanto ainda aquilo iria doer, e eu maltratei mais a minha perna ao caminhar pelo Campo Grande.
Deitei-me na cama plena de cansaço e dor para dormir com gelo na perna, mas não havia a menor chance de eu perder a oportunidade de me despedir de Kalu na manhã seguinte. Havia escrito a mão uns maus versos que pretendia atirar sobre o caixão junto às flores. Meu corpo, porém, não me obedeceu quando amanheci antes do despertador.
O relógio soou às oito, início do velório. Imaginei Anap, Camilo, Júlia, Marinho, Ovo e Rori a se depararem com o tule barato sobre o corpo de Kalu, as narinas de algodão do nosso amigo e não consegui me levantar. Coroas de flores de todos os importantes que não puderam ir lotariam a capela quatro. Os amigos do baba da praia a chegar. Os da faculdade. Os da farra. Aqueles que nem lembravam de onde o conheciam, mas que o amavam. Só eu não fui.
Corta para a noite. Matheus, novo amigo meu, mas velho conhecido do círculo de Kalu, perguntou em um áudio por que eu faltei ao sepultamento e contei-lhe que meu joelho doeu. Li essas palavras que digitei e nem acreditei que dera aquela resposta ridícula, como se um machucadinho fosse me impedir de fazer alguma coisa tão importante. Não era essa a razão.
Eu, que fui de pijama para o enterro de Sergio Costa, meu antigo chefe do Correio, porque soube do enterro em cima da hora; eu, que fui de coração partido em mil pedaços depois de um virote do fim de um namoro que quase foi meu fim também, para ir ao enterro de tia Mila, mãe de Nyala, e ainda tive forças para ler no microfone um poema uruguaio; eu não faltaria. Mas faltei.
Sempre fui chegada a homenagens, mas não dessa vez. Estou a uma polegada da depressão bipolar, dando um Pelé nos gatilhos que podem literalmente me matar. Aquele enterro seria como o golpe fatal de um hadouken e eu estava desarmada para essa batalha. Na hora em que visse minha irmã em prantos, eu iria desmaiar. Quando a sanfona chorasse no miudinho da zabumba no velório lotado e chuvoso, achariam que a viúva era eu.
Abraçar Flavinho, Xumi, Julicana, Japa, Will, Lôro, Lobão, Meota, Lahiri, Bibop, Lívia, Ovo, Luana ou qualquer outro amigo - planetas que gravitavam na órbita daquele sol gigante que fomos obrigados a encerrar no escuro de um caixão - seria demais para mim. Gigante, Kalu entenderia por que eu não fui até lá. Mas é como a máxima de Tiririca: “Tentei fugir de mim, mas onde eu ia, eu tava”. Não adiantou.
Em minha casa, na fila do SUS ou no BRT que Bruno Reis enfeitou para o Natal soteropolitano, a minha existência é pura saudade, e eu não deixarei de senti-la só porque eu não vi o corpo morto de meu amigo para traumatizar meus olhos. Ter ido ou não me despedir da matéria de Kalu não cura o arrependimento por não ter aproveitado mais o meu amigo. Isso é o que dói nessa morte que coleciono.
Ele estava a meu alcance toda quinzena e eu não fui prestigiá-lo. Ele gostava do que eu escrevia e eu não disse o bastante o quanto a recíproca era verdadeira. Não fui a Moreré com ele nem uma única vez. Quantas vezes o vi na praia e não juntei meus brechós com os dele para curtirmos juntos na mesma canga? Não o visitei na doença - burra, ingênua que sou, a esperar um melhor momento.
Ah, meu coração, te deixo sentir, por uns minutos, a paz de acreditar que existe um céu onde Kalu seja a menina com uma flor do poema de Vinícius; uma joia entregue de mão em mão por quem o antepassou e agora lhe beija a fronte de grinaldas, numa espécie de “corredor baianês” que um dia se encherá de todos os nossos amigos, aos poucos, numa festa que só aumenta. Imagina, sonho meu, Kalu, Sande, Daniel e Serafim a rirem, abraçados, cantando para a gente subir.