Os Trilhos Enferrujados da Economia da Bahia

"Na Bahia, a situação da infraestrutura ferroviária, concedida pela União à iniciativa privada, em última instância uma concessão de toda população brasileira, segue lenta e constantemente em direção à idade da pedra"

Publicado em 15 de outubro de 2024 às 19:37

Matheus Oliva é empresário, investidor e consultor de estratégia de negócios Crédito: Divulgação

Em 196 A.C., aos 12 anos de idade, o faraó Ptolomeu V Epifânio, emitiu um decreto, inscrito na pedra, em três linguagens diferentes: demótica, hieróglifos e grego antigo. Desta forma poderia se comunicar com toda a população do território para garantir o comando do Egito. A pedra do decreto foi encontrada durante as invasões militares lideradas por Napoleão Bonaparte, em 1799, na cidade de Rashid (o “Reto”, o “Bem Guiado”, em Árabe). Entreposto logístico no delta do Rio Nilo, os franceses batizaram a importante urbe de Rosetta. A pedra matriz do decreto ficou conhecido internacionalmente como a “Pedra de Rosetta”. O achado permitiu que Jean-François Champollion decifrasse os hieróglifos em 1822, elo linguístico fundamental para compreensão da história humana. É dito que após tamanho esforço para decifrar a língua pictórica egípcia, o jovem francês desmaiou e permaneceu 5 dias inconsciente. Exemplo de que não se muda nem se escreve a história somente pelo acaso, é necessário esforço. Hoje a Pedra de Rosetta é peça fundamental do Museu Britânico, em Londres. A estória inspirou a poderosa francesa, Christine Lagarde, presidente do Banco Central Europeu, a proferir discurso em 2015, em Washington, EUA, quando era Diretora Geral do FMI. No discurso, Lagarde evocou três macro ações para desenvolvimento da humanidade chamando-as de “Momentos de Rosetta”. Uma delas destaca o investimento em infraestrutura. Lagarde proferiu: "o investimento público em infraestrutura aumenta a produção no curto prazo ao estimular a demanda, e no longo prazo ao aumentar a capacidade produtiva da economia.” No alvo.

Na Bahia, a situação da infraestrutura ferroviária, concedida pela União à iniciativa privada, em última instância uma concessão de toda população brasileira, segue lenta e constantemente em direção à idade da pedra. É uma realidade crítica e urgente: a falta de investimentos básicos e de compromissos firmes por parte da concessionária Ferrovia Centro Atlântica – FCA continua desvalorizando gravemente a região nordeste. Enquanto isso, a VLI controlada pela Vale S.A e Brookfield Asset Management e controladora da FCA, investe bilhões em projetos ferroviários integrados a portos que atendem a economia sudestina do Brasil e outros estados do Centro-Oeste. Os cerca de 15 milhões de residentes do estado berço da nação brasileira permanecem ludibriados em promessas não cumpridas pela companhia ferroviária. Há quase três décadas a FCA negligencia a infraestrutura de transporte da produção da região, quando deveria ser o eixo para impulsionar o desenvolvimento logístico da Bahia.

Essa postura não apenas prejudica a Bahia, mas também desafia o conceito básico de concessões públicas. O objetivo das concessões públicas, antes, não é atender ao interesse do concessionário privado, mas, sempre, promover o desenvolvimento socioeconômico, beneficiando diretamente a população. Conceder serviços é uma maneira do Estado delegar funções e investimentos tendo em vista o retorno da melhoria da economia da região atendida pelo concessionário. O lucro, nesse modelo, é o meio para atingir esse objetivo, e não o fim. Se a FCA não tem interesse de cumprir suas obrigações com a Bahia, a solução é clara: paga o que deve, devolve a concessão ao governo, e o governo prioriza a gestão deste recurso para o bem da sociedade, com ou sem parceiros privados interessados no bem da região.

A Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), o Governo Federal, por fim, todas autoridades de Estado precisam agir imediatamente e participar ativamente da audiência pública que acontecerá nesta próxima sexta-feira, 18 de outubro de 2024, para de fato ouvirem os ecos do que quer a população baiana e poderem se manifestar publicamente, não em gabinetes de portas fechadas em Brasília, acessados por interesses particulares. A Bahia não aguenta mais sofrer em paz. A paciência com a negligência da FCA acabou. O idílico e reverenciado estado da Bahia, com toda sua notória importância cultural, econômica e histórica, contada em versos e prosas, quer uma malha ferroviária moderna e funcional, que permita uma integração competitiva plena com o Brasil. Não se pode aguardar que decisões críticas sobre a infraestrutura do estado sejam, sob o manto da indulgência pública, indefinidamente adiadas por interesses privados. Não se pode permitir que o futuro do país seja comprometido pela inércia de concessionárias privadas que colocam seus próprios interesses acima do desenvolvimento nacional. Afinal, a nação brasileira só será forte e próspera no todo, nunca em partes isoladas. A VLI, através da FCA, isolou a Bahia sem que um decreto tenha sido emitido, quem dirá decifrado.

*Matheus Oliva é empresário, investidor e consultor de estratégia de negócios com vasta experiência em logística portuária, comércio internacional e planejamento corporativo. Liderou o desenvolvimento de negócios internacionais de grande impacto para o estado da Bahia e atuou em projetos complexos nos setores de energia, indústria e infraestrutura. Matheus participou do conselho e da gestão de instituições na área portuária. Prolífico articulista, tem um profundo interesse por geopolítica e filosofia, temas que influenciam suas análises e abordagens no mundo dos negócios e na economia brasileira.