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Publicado em 5 de maio de 2024 às 18:30
Madonnas, eu vi. Acabou o show, precisei escrever. Um texto em rede social dizendo que talvez em cem anos, uma poeira de estrelas nos oferte uma brisa por aqui, da excelência de realização artística tão imensa e integrada, sob o aspecto das mega produções. Tudo irreverentemente no lugar. Citei Madonna e Michael Jackson (e ela também), como ícones inigualáveis de mesma geração.
De ontem para hoje o show não acabou. Até disse lá no final do texto: que a resenha continue! Os ecos deste show-cebola, cheio de camadas, que nos fez chorar, emocionar, delirar, saborear e transcender, naquilo que só a arte, a serviço da vida, pode ofertar.
Madonnas, eu vi. Um show de “entrefrentamentos”. Gigante em recursos de linguagens musicais, corporais, cinematográficas, performáticas, som, luz, câmeras e muitas ações. Um show também de Mãe dona de filhos de arte no palco.
Eu vi, o que muitos viram e registraram nas redes: um ritual. Um ritual de quebra de tabus, de caretices, de necessidades que já transformaram e transviram o mundo. Um ritual de unificação e cura. E ainda permanecemos, qual Timbiras, aprisionando o último dos Tupis e vendo seu sofrimento libertário inspirado pela fragilidade do pai velho e cego, quase moribundo, que floresce em lágrimas como símbolo de desonra.
Uma apresentação épica, que em meu caldo caótico imaginal, revisitou o poeta maranhense Gonçalves Dias, em seu épico de dez estrofes: I-Juca Pirama. Uma das mais lindas e importantes sagas de um herói indígena, da literatura romântica brasileira. Enquanto relia (recomendo) o herói de Gonçalves e chorava de novo, as heroínas Madonnas causaram o barraco libertário que vos trago.
Trago estigmas. Uma espécie de I-Juca “Piranha”, barrada em todos os bailes, como aconteceu literalmente e simbolicamente no próprio show, na cena que era impedida de entrar na festa. A heroína que atua, expurga, expulsa e ocupa seu lugar social “até meu último dia de vida” - asseverou I-Juca Madonna, junto com todas, todos e todes que resistem, desafiam e transformam seus medos e angústias em liberdades para si e para o mundo.
Madonnas, eu vi. A história de 40 anos, fechar (ou abrir?) com chave de diamante sua tour em Copacabana. Um desfile de sua existência artística nas telas e na memória do público que viu as personas-Madonnas ao longo do tempo.
“Eu vi o grande amor escancarado em cada cara, eu vi
O amor evaporando pelos céus da Guanabara Amores de imortal verão
Meninas, como eu vi
Vivendo poesia de verdade”. (Meninos, eu vi - Chico Buarque)
Eu vi o palco aceso para Anitta e Pablo Vittar, Madonnas, eu vi. Eu vi as imagens inspiradoras da Rainha-Má (Daniela Mercury), de Paulo Freire, de Gilberto Gil, Mano Brown, Marina Silva, Érica Hilton, Abdias do Nascimento, Marielle Franco, Elza Soares. Eu revi Madonna se curvando a Caetano. Eu vi a bandeira brasileira revolvida, resolvida e devolvida. Eu vi tantas Madonnas espalhadas e espelhadas nas areias. Eu vi discussões que nos atravessam e que se não fossem tantas Madonnas em nós abrirem seus palcos, por diversas origens, a afirmação de Heráclito de Éfeso: “a única constante permanente da vida é a mudança” não faria o menor sentido.
É algo para guardar na memória com carinho, respeito e aplauso. Por todas as camadas de prazer extremo, mas também pelo enfrentamento das feridas do tempo, que provocam dor, mas também cura.
E para não dizer que não falei de flores, o tema da invisibilidade do músico, não da música, também me incomoda e foi aceso nesta resenha. Acho que cabe outro artigo sobre playbacks, encenações e apagamentos. Um artigo de análise histórica sobre as relações do lugar dos músicos nos palcos baianos, brasileiros e mundiais com as estrelas de cada tempo.
Madonnas, eu senti.
Andrezão Simões é produtor artístico, comunicador e especialista em psicologia analítica