O brasileiro não vê o cinema nacional

Eu não gosto de pensar que estamos produzindo em excesso ou que se gasta demais na produção. O que é preciso é fazer que o sistema funcione bem, que esteja em equilíbrio

Publicado em 20 de outubro de 2024 às 08:00

Anualmente, centenas de filmes e séries são produzidos no Brasil. Em sua imensa maioria com dinheiro público advindos do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), da Ancine (Agência Nacional do Cinema). O Brasil é um dos países onde há maior incentivo estatal para produção de audiovisual no mundo e acredito ser indiscutível a necessidade de produzirmos filmes, seja pela questão cultural (identidade, pensamento artístico, soft power político, entre outros) quanto pela questão econômica, pois o audiovisual é um dos maiores setores em termos de geração de renda e emprego.

Mas, o nosso cinema enfrenta dilemas antigos, embora constantemente renovados, e que nos ameaçam jogar para estaca zero mais uma vez. São questões sérias e que podem inviabilizar nossa produção crescente, que estão sendo ignoradas e sendo jogadas para debaixo do tapete. Se há alguns anos acreditávamos que caminhávamos a passos largos para conquistar o nosso mercado interno com expressivos 30 milhões de espectadores em 2016 (cerca de 16% de ocupação das salas), em 2023 registramos apenas 3,7 milhões de espectadores, algo em torno de 3% da ocupação do mercado interno.

Constata-se que cinema brasileiro não é visto por sua população. Como justificar os bilhões de investimentos em produção e distribuição se não obtemos os resultados mínimos esperados?

O setor produtivo, historicamente bem organizado, vem conquistando verbas cada vez mais generosas a cada ano que passa sem que um mercado verdadeiro seja criado no país. O cinema brasileiro está falhando grosseiramente no que diz respeito a encontrar seu público. Pode-se até dizer que estamos distribuindo renda com os incentivos, mas temos dificuldade em gerar novas divisas e criar um mercado que seja autossustentável.

Voltando aos números, em 2023, foram lançados e exibidos 266 longas brasileiros nas salas de cinema do país. Ou seja, existe salas de exibição abertas ao cinema brasileiro. Vou além: existem muitas salas vocacionadas para o cinema nacional e essas são as que mais sofrem com a falta de público. A renda total gerada pelo cinema brasileiro, nas salas de cinema, girou em torno de R$ 278 milhões.

No mesmo ano, foram lançados e exibidos 149 longas estrangeiros para uma renda total de cerca de R$ 2 bilhões. Quantidade muito menor de filmes e uma renda estrondosamente superior. A maioria dos títulos estrangeiros é, obviamente, oriunda dos EUA. Trata-se de um elaborado mecanismo de transferência de recursos para um outro país. Um perfeito soft power contemporâneo.

Não há nenhum filme brasileiro no ranking dos 20 filmes mais vistos, em 2023. Não vou me estender muito. Creio que já dá para compreender que há um alto investimento no setor e os resultados são decepcionantes.

Mas, o que afasta o público do cinema nacional, nas salas de cinema?

Muitos argumentam que o cinema nacional não possui qualidade suficiente. Somente quem não conhece a diversidade e potência da nossa cinematografia pode dizer algo semelhante. A participação e os prêmios recebidos em centenas de festivais internacionais, nos últimos anos, corroboram a vitalidade e diversidade da nossa cinematografia. Eu, em particular, acompanho de muito perto a reação ao filme nacional, seja pelo dia a dia, ou pelos festivais de cinema que organizo e costumo acompanhar. Atesto que os filmes nacionais emocionam, divertem e causam reflexão que nos são vitais.

Fala-se muito do preço do ingresso, que gira em torno, em média, de R$ 19 no Brasil. Um valor mais baixo que na Argentina, Chile e África do Sul, por exemplo. Sabemos que, durante a semana, os ingressos costumam ser muito menores. Existem muitos programas com valores quase simbólicos para a entrada nas salas em muitos locais do país. Sinceramente, eu também descarto essa possibilidade. No Cine Glauber Rocha, do qual sou responsável e possui vocação para o cinema nacional, temos muitas sessões a módicos R$ 5. Essa não é a questão.

É verdade que há uma crise nas salas de cinema, que ainda não se recuperaram da pandemia e da força absurda com que as grandes do streaming chegaram ao país. Mas, a perda de poder das salas de cinema frente ao streaming vale para a programação como um todo e não em particular para a falta de público do cinema nacional.

O Brasil produz muitos e bons filmes. Existem boas produtoras, distribuidoras, um parque de exibição considerável e acolhedor ao filme nacional, estrutura política e dinheiro. Sim, temos muito dinheiro para o cinema. Para quem, como eu, vivenciou a política cultural dos anos 90, quando não havia absolutamente NADA para o cinema (e também para a produção cultural, em geral), o que estamos vivendo hoje é um sonho que parecia impossível de ser atingido.

Ora, se temos qualidade, competência, dinheiro e boa vontade, o que nos falta para reconquistarmos de uma vez o nosso mercado audiovisual interno?

Falta uma nova logística e organização que promovam de forma incessante o nosso cinema. Faltam estratégias gerais para o cinema nacional, mas também falta investir de forma inteligente e articulada na comercialização de cada filme lançado.

Falta investir na formação de um novo público e dar garantias para que as salas se mantenham aliadas ao cinema brasileiro. Falta ter mais carinho e cuidado com o momento crucial que é o lançamento dos filmes. Os filmes não estão sendo lançados, mas, sim, “jogados”.

Vejam que o cinema norte-americano costuma promover seus filmes com muita antecedência. Não é garantido, nem sempre dá certo, é verdade, mas trailers e posters chegam às salas com meses de antecedência. Temos conhecimento de notícias diversas das produções diariamente muito tempo antes da estréia comercial.

No Brasil, é raro que exista uma preparação longa, que seja construído diálogo com os exibidores, cartazes e trailers entregues com meses de antecedência… Investe-se no instagram duas semanas antes do lançamento, numa concorrência maluca com milhares e milhares de produtos em lançamento no limbo internético.

O público, no geral, não acompanha festivais de cinema ou mesmo lê críticas especializadas. É preciso trabalhar meses antes, mobilizar parte do público-alvo em um trabalho longo. Poucas vezes vejo isso sendo feito.

Eu costumo receber muitas ligações de diretores e distribuidores que nos pedem uma sala, um horário que seja, para o lançamento. Eu sempre pergunto qual trabalho foi feito, antes. A resposta quase sempre é nula.

É muito importante ressaltar que, via de regra, todo filme produzido e lançado é subsidiado pelo estado. As salas de cinema, historicamente, não recebem incentivo. A Lei Paulo Gustavo foi uma exceção.

As salas costumam funcionar sob as regras do mercado. A produção, não!

Não há risco de prejuízo para produtores, diretores e distribuidores caso um filme não tenha público. Para uma sala de cinema existe. O preço da energia para os cinemas é absurdamente elevado. Não se espante se eu disser que um pequeno complexo com quatro salas de cinema ultrapassa os R$ 50 mil na conta de luz…. Agora, imagina pagar conta tão elevada e ver a sala com duas ou três pessoas em uma única sessão….

Há o pagamento de funcionários, água e toda uma pesada infraestrutura. Um moderno equipamento de projeção varia entre R$ 250 mil a

R$ 500 mil.

A Ancine anunciou, poucos dias atrás, mais R$ 1,6 bilhão em novos investimentos. Praticamente, tudo em produção. Não se fala em investimentos em festivais, mostras de cinema ou salas de exibição. Já estamos próximos de completar dois anos de Governo Lula e o setor audiovisual continua plenamente em desequilíbrio. Muito para uma ponta, pouco ou quase nada para outra. Estamos vendo uma distribuição de renda, não a construção de um mercado genuíno.

Eu não gosto de pensar que estamos produzindo em excesso ou que se gasta demais na produção. O que é preciso é fazer que o sistema funcione bem, que esteja em equilíbrio.

As condições estão todas aí. Basta realizar!

Fato é que se o cinema brasileiro não se encontrar com o seu público, perde-se o sentido. E voltaremos à estaca zero. Mais uma vez.

Fonte: Ancine