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Publicado em 26 de janeiro de 2025 às 09:59
O ano estava sendo terrível para os exibidores, no Brasil. Poucos filmes realmente atrativos e nenhum longa brasileiro havia despertado a atenção do grande público. Os longas brasileiros não alcançavam nem míseros 3% dos ingressos vendidos em 2024. Salas vazias, imenso prejuízo para um setor que depende do seu público, da bilheteria.>
Desde a pandemia, aliás, a exibição ainda não se reergueu. A concorrência pesada dos streamings, a pirataria em alta, a falta de visão do poder público que privilegia apenas a produção, além dos custos de manutenção elevadíssimos e dívidas que se acumulam ao longo dos anos vinham rendendo uma terrível sensação de derrota para os exibidores. O ano parecia irremediavelmente perdido.>
No início de agosto, chegou a notícia de que Walter Salles, além de produtores e distribuidora do longa Ainda Estou Aqui, queria realizar uma semana com exclusividade no Cine Glauber Rocha, pouco menos de um mês antes da estréia nacional. O objetivo era credenciar o filme à disputa ao Oscar. Mas, havia, também, o desejo de testar o filme junto ao grande público. Aquelas sessões em um cinema de rua, no coração de Salvador, que apóia de forma constante o cinema nacional e que leva o nome do mais conhecido e respeitado diretor brasileiro em todos os tempos, demonstra o respeito de Walter e sua equipe pelo nosso trabalho e pelo cinema brasileiro. No final das contas, encarei tudo como um pedido de que Glauber e Salvador iluminassem a trajetória do filme, que estava apenas começando.>
Foram algumas conversas para acertarmos os detalhes que deveriam ser mantidos em sigilo. Em um dos encontros, um dos produtores me confessou que a expectativa não era alta com o filme. Ele chamava Ainda Estou Aqui de filme “pequeno para médio” e dizia que a pretensão era alcançar 300 mil espectadores no Brasil. A ambição a uma vaga do Oscar já existia e o trabalho de Fernanda Torres sempre era destacado. Mas, tudo era tratado como difícil e, até mesmo, improvável.>
Havia uma preocupação técnica da equipe com a qualidade de projeção no Glauber. Walter Salles é um perfeccionista em termos de imagem e todos lá sabem que, do lado de cá, há sempre um cuidado muito grande com a projeção.>
Faltando poucos dias para a exibição, Adrian Tejido, diretor de fotografia do filme, veio conferir a projeção. Adrian é o mesmo diretor de Marighella, dirigido por Wagner Moura. Aliás, a fotografia de Marighella é das melhores coisas do filme. Tive um imenso prazer em recebê-lo e foi possível ter longas conversas sobre cinema.>
Ele pediu para ver dez minutos de Ainda Estou Aqui. Acabou por ver todo o filme e, emocionado, sentenciou: “A projeção do Glauber é melhor do que a do Festival de Veneza”.>
Fiquei contente com aquele encontro, mas eu me mantinha tenso pois não via um movimento significativo de vendas de ingressos após termos revelado que o filme estrearia em Salvador, no Glauber. Eu não via correria por parte do público para garantir ingressos e as sessões continuavam com muitos lugares à venda. Parecia que eu era o único ansioso.>
Para o meu alívio, na primeira sessão, em 19 de setembro, os ingressos se esgotaram um pouco antes do filme começar. Adrian ainda estava aqui em Salvador e deu algumas palavras com o público. Produtores da VideoFilmes e da Sony vieram acompanhar o filme.>
Algo muito forte aconteceu, ali, logo na primeira sessão. As pessoas se emocionaram muito, mesmo. Foram às lágrimas e se recusavam a ir embora durante os créditos finais. Ao som de Erasmo Carlos, com as fotos da casa de Rubens e Eunice Paiva, ninguém se levantava. Aplausos e mais aplausos somente quando já não tinha mais nada na sala, nem imagem ou música. Muito tempo de aplausos fortes e eu queria que as pessoas fossem embora, pois ia começar uma nova sessão e já havia uma fila gigante do lado de fora. Sim, a segunda sessão também estava esgotada. E os ingressos para os dias seguintes rapidamente se foram. E, em TODAS as sessões, foi a mesma emoção. Enquanto tivesse som ou imagem, ninguém saía da sala. Eu nunca vi disso no cinema, sinceramente, em tantas sessões seguidas.>
Ali, eu tive certeza de que o filme iria emocionar fortemente o público brasileiro. Ainda Estou Aqui ultrapassou em muito as melhores expectativas dos produtores e do próprio Walter Salles. Mais de 3 milhões de espectadores já viram o longa, no Brasil.>
O Glauber está entre as três salas que mais venderam ingressos para o filme, no país. Estamos falando de um cinema de rua, no Centro Histórico. É um fato e tanto!>
O movimento das salas de cinema no país, no geral, melhorou muito desde a estreia de Ainda Estou Aqui. É aquela tese de que quando um filme vai bem os demais são auxiliados. Em dezembro, estreou o Auto da Compadecida, de Guel Arraes e Flávia Lacerda. O filme também é um sucesso de público, principalmente no nordeste. Entre dezembro e janeiro, o cinema brasileiro teve ocupação de salas em torno de 35%. Há muito tempo não víamos isso.>
E Ainda Estou Aqui segue com fôlego. No dia seguinte após Fernanda Torres ganhar o Globo de Ouro, filas e mais filas se formaram em plena terça-feira nas calçadas do Glauber.>
E agora, com as indicações extraordinárias para o Oscar (Melhor Filme, Melhor Filme Estrangeiro e Melhor Atriz) acredito que o filme ainda terá longa jornada nas salas de exibição antes de alcançar o (famigerado) streaming.>
Ainda Estou Aqui possui reais chances de ganhar alguma estatueta, pois está sendo brilhantemente promovido nos EUA. Revistas importantes e programas de entretenimento dão espaço à carismática Fernanda Torres. Críticas elogiosas dão corpo ao filme, que já entrou em cartaz nos EUA e na França.>
No Brasil, há um clima de Copa do Mundo em determinados segmentos da sociedade. Mas, qual a real importância que essas indicações e uma possível estatueta possui, de fato, para o país?>
Festivais e premiações chegam e passam muito rapidamente. Ninguém nem se lembrava mais, por exemplo, que a própria Fernanda Torres ganhou como Melhor Atriz em Cannes, em 1986, com o filme “Eu Sei que vou Te Amar”, de Arnaldo Jabor. Sim, estamos falando do Oscar, que atrai ainda mais atenção e é um prêmio do mercado para o mercado. E se trata de um evento raro: o mesmo filme credenciado a disputar Melhor Filme e Melhor Filme Estrangeiro, além de Melhor Atriz.>
Sem dúvida alguma, o filme vai ganhar muito com todo esse movimento. Walter Salles, Fernanda Torres e todos da equipe serão fartamente recompensados. O cinema brasileiro ganhará atenção especial, por algum tempo. Alguns poucos filmes poderão ser beneficiados em um curto espaço de tempo. Tudo isso é muito bom, sem dúvida!>
O mais importante de tudo, mesmo, diz respeito a resolvermos, no Brasil, uma equação que não está fechando e incomoda. Tem muito filme sendo produzido e pouco público assistindo aos filmes brasileiros. Somente no ano passado, sem levar em consideração festivais e curtas, o Glauber exibiu 96 longas brasileiros em mais de 1600 sessões de cinema. Quantos desses filmes você, leitor, assistiu?>
Não podemos nos dar ao luxo de que apenas um ou dois filmes façam sucesso. Não podemos abandonar as salas de exibição, sobretudo as de rua. Os cinemas de rua possuem efeito determinante no desenho urbano de uma cidade. Vejam o nosso caso. A Praça Castro Alves e a Rua Chile estavam abandonadas quando o Cine Glauber Rocha foi reinaugurado, em 2008. Hoje, é uma das áreas mais desejadas da cidade.>
Há pelo menos três centenas de filmes produzidos por ano, no Brasil, que caem no limbo.>
Que o Oscar tragar luz para o cinema brasileiro. E que consigamos resolver nossas questões estruturais fazendo com que os nossos longas e curtas sejam vistos durante o ano todo por sua população. E que o cinema nacional continue brilhando nas mais importantes vitrines do mundo todo!>
Cláudio Marques é exibidor, cineasta e idealizador do Cine Glauber Rocha. @caumarques>