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Clarissa Pacheco
Publicado em 2 de junho de 2024 às 05:00
Os documentos que ajudaram a legitimar a imortalidade de Castro Alves, o “Poeta dos Escravos”, têm a assinatura, literalmente, de uma dama do Império: Dona Adelaide de Castro Alves Guimarães. A mulher que nasceu em Salvador em 1873 e se tornou influente entre os círculos políticos da República, entretanto, é muito mais conhecida pelas suas ligações com a biografia do irmão, o poeta Castro Alves – a quem chamava carinhosamente de Cecéo –, do que pelo próprio papel como poetisa e como uma importante abolicionista brasileira, que costumava receber membros das elites políticas em seu palacete, na Soledade. >
Alguns dos caminhos percorridos por Dona Adelaide, casada com o jornalista e político Augusto Álvares Guimarães, aparecem no artigo ‘Rastros de uma dama do Império na República: a atuação de Adelaide de Castro Alves Guimarães no circuito intelectual e político brasileiro (1896-1937)’, de Telma Ferreira de Carvalho, publicado na recente edição especial da Revista de História da Universidade Federal da Bahia (UFBA), disponível gratuitamente no site da publicação.>
A revista, de iniciativa discente, publica artigos científicos de História e áreas afins em fluxo contínuo, de graduandos e pós-graduandos, da UFBA e de outras instituições de ensino superior. O objetivo é divulgar a produção historiográfica e contribuir com a difusão, diversidade e democratização da produção acadêmica, promovendo o acesso horizontal, livre e gratuito às produções.>
Na última edição, disponível no site https://periodicos.ufba.br/index.php/rhufba, foram publicados sete artigos resultantes do I Seminário Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFBA, em maio do ano passado. O evento contou com estudiosos de três linhas de pesquisa e com uma conferência inédita do professor João José Reis, importante nome dos estudos da escravidão no Brasil, intitulada ‘Manoel Florêncio do Espírito Santo: um professor negro na Bahia oitocentista (1836-1896)’.>
Dos anais do Seminário, nasceram artigos como o que trata dos rastros de Dona Adelaide nos círculos políticos da República, mas que se debruçam, também, sobre o trabalho de homens e mulheres negras em Salvador no século XIX, ativos em diversos setores: caixeiros, alfaiates, costureiras e músicos. É deles, os músicos e músicas, que trata o trabalho de Marcele da Silva Moreira: ‘Músicos negros no tecido social de Salvador na primeira metade do século XIX’.>
O texto analisa a experiência de indivíduos negros, crioulos e pardos que conseguiram viver do próprio talento como músicos em Salvador. Eram esses homens e mulheres que produziam a sonoridade das ruas da cidade nos Oitocentos e que também garantiam a execução da música sacra de “dentro das Igrejas”, em missas, festas católicas e ritos fúnebres – não sem causar, de certo modo, algum incômodo entre os viajantes estrangeiros que passavam pela cidade e registravam no papel o que seus olhos e ouvidos conseguiam captar.>
Ana Victória da Silva Borges também escreve sobre trabalhadores e trabalhadoras de Salvador no século XIX, mas se dedica ao universo da costura, que enfileirava anúncios nos jornais da cidade sobre a venda de artigos necessários ao ofício, em casas comerciais, ou à própria comercialização de artigos de vestimenta prontos ou sob encomenda. Os anúncios, observa Ana Victória, costumavam ligar o nome dos homens à alfaiataria e o das mulheres à costura e ao bordado, marcando certa divisão sexual do trabalho no setor.>
O século XIX também é o palco da pesquisa de Adriano Ferreira de Sousa, autor do artigo ‘Labor dependente: os caixeiros e as múltiplas formas de exploração de mão de obra na Salvador oitocentista (1850-1889)’, que trata da exploração do trabalho livre ou dito livre dos caixeiros pelos comerciantes de Salvador, além das complexas relações de trabalho entre eles, e entre os caixeiros e trabalhadores escravizados.>
Isso porque, aponta Adriano, a burguesia ascendente do período buscava impelir as classes subalternas ao trabalho produtivo, não apenas para livrar as ruas dos mendigos, os que chamavam de vadios e os órfãos e menores desvalidos, mas também para aumentar a mão de obra disponível. Esse universo era, portanto, marcado pela exploração e pelos arranjos de trabalho dependente, como mostra o artigo de Adriano.>
Menores e desvalidos também aparecem, desta vez em posição de protagonismo, no artigo de José Pedro Carrano da Silva. O trabalho é intitulado ‘Reflexões e apontamentos para a pesquisa de ingênuos e menores desvalidos nos mundos do trabalho das últimas décadas do século XIX’ e busca pensar direções e apontamentos para pesquisas relacionadas a esses grupos, sobretudo levando em conta novas fontes de informações, como documentos do judiciário, periódicos e teses acadêmicas de Direito e Medicina.>
Um personagem conhecido dos baianos – o etnólogo e médico legista Nina Rodrigues – é o tema do trabalho de Rafael Matheus de Jesus da Silva e Dagoberto José Fonseca. O artigo ‘Tragam-me a cabeça de Antônio Conselheiro: As teorias raciais em Nina Rodrigues e o fetichismo na Justiça Criminal’ trata justamente das produções teóricas de Nina Rodrigues, maranhense radicado na Bahia que fomentou as bases da criminologia no Brasil no final do século XIX e se preocupou em identificar as características de um ‘criminoso nato’, partindo de preceitos raciais. A despeito de suas ideias, Nina Rodrigues dá nome ao Instituto Médico Legal de Salvador, homenagem contestada em 2022 pela Defensoria Pública do Estado.>
Um último personagem abordado neste número da revista é o reverendo presbiteriano Jaime Wright, tema do trabalho de Felipe Moreira Barboza Duccini, doutorando em História pelo PPGH-UFBA, intitulado ‘Entre a cruz e a espada: trajetória de vida de Jaime Wright’. O artigo estuda a trajetória de vida do reverendo dentro de um contexto político, social e religioso durante a ditadura militar brasileira, entre 1964 e 1985.>
Wright era defensor dos direitos humanos e participou da fundação e/ou coordenação de instituições e projetos como o Comitê de Defesa dos Direitos Humanos para os Países do Cone Sul, o Conselho Latino-Americano de Igrejas, a Coordenadoria Ecumênica de Serviços e o projeto Brasil Nunca Mais.>
Atuou fortemente em São Paulo, ao lado do arcebispo Dom Paulo Evaristo Arns, mas teve uma atuação, também, no interior da Bahia, como mostra o trabalho de Duccini: viveu em Ponte Nova (atual Wagner), onde dirigiu o Instituto de Educação Presbiteriano, e depois transferiu-se para Caetité, em 1964, no mesmo ano do golpe militar, onde dirigiu a Igreja Presbiteriana da cidade.>
A Revista de História da UFBA existe desde 2009 e, de lá para cá, já publicou artigos distribuídos em 14 números. O acesso e a publicação são gratuitos.>
Clarissa Pacheco é jornalista, mestranda em História pelo PPGH-UFBA e integra o conselho editorial da Revista>