Acesse sua conta

Ainda não é assinante?
Ao continuar, você concorda com a nossa Política de Privacidade
ou
Entre com o Google

Alterar senha

Preencha os campos abaixo, e clique em "Confirma alteração" para confirmar a mudança.

Recuperar senha

Preencha o campo abaixo com seu email.

Já tem uma conta? Entre

Alterar senha

Preencha os campos abaixo, e clique em "Confirma alteração" para confirmar a mudança.

Dados não encontrados!

Você ainda não é nosso assinante!

Mas é facil resolver isso, clique abaixo e veja como fazer parte da comunidade Correio *

ASSINE

Carybé desenha em séries e coleções os ciclos das festas, das danças dos peixes e das feiras

Leia artigo de Wal Souza na íntegra

Publicado em 1 de setembro de 2024 às 05:00

  Crédito: Acervo pessoal

Como muitos sabem, Carybé se fixa na Bahia em janeiro de 1950. Ele queria mudar os rumos de sua vida e combiná-los com os das ondas do mar, como as que são vistas quando alguém se senta nas praias da península itapagipana de Salvador, de onde se pode imaginar mirar o fundo do Recôncavo Baiano. O artista chega em uma época na qual se podia ver despontar no horizonte os saveiros cheios de frutas que iam para feiras, os romeiros que iam para as lavagens pagar suas promessas, comer do bem bom e ainda esticar as pernas num samba daqueles.

O já conhecido artista recebe uma bolsa da então Secretaria de Educação e Saúde, que, como afirmam alguns pesquisadores da cultura soteropolitana, também incluía as ações voltadas para a cultura. Essa secretaria era conduzida, quando Carybé chega aqui, por ninguém menos do que Anísio Teixeira, o patrono da educação baiana.

Pela bolsa que recebe compõe o mural “Panorama de Salvador”, em 1950, com dimensões 2,00m altura por 6,00m de largura, feito pela técnica de pintura mural em têmpera. Na composição, o artista faz, de fato, o que seria uma imagem panorâmica da Cidade Baixa vista do meio do mar, como se alguém, em um saveiro, se aproximasse da cidade. O mural ainda hoje se encontra exposto na sala de entrada do Centro Educacional Carneiro Ribeiro, uma das escolas Classes - a II -, do complexo de escolas Parques. Esse mural, da Escola Classe, é um dos 19 painéis de Carybé tombados pela Fundação Gregório de Matos (FGM), em janeiro de 2020, pelo decreto municipal nº 32112. O que foi bem comemorado.

Por essa mesma bolsa e no mesmo ano, Carybé desenha seis séries para a mesma Secretaria de Educação. A série é composta por 234 desenhos, feitos a nanquim e com dimensões de 27 por 21 cm. Esses desenhos são amplamente conhecidos na Bahia e no Brasil. Consta no registro do Museu de Arte da Bahia (MAB) que todos os desenhos foram doados pelo artista decorrente de recebimento de bolsa. O importante dessas séries é que cada desenho conta com título inventado pelo artista. Então, o “Vendedor de Perus” passa a ser o nome associado à imagem que quase todo mundo já viu e acha estupenda. Ela compõe a Série da Feira Água de Meninos. Cada um desses desenhos compõe a imagem de uma cena do conjunto – ou série – no qual está inserido, enchendo os nossos olhos com imagens que ainda podem ser encontradas em certas partes de Salvador.

O danado do Carybé faz andar pelas folhas onde desenhou a Série Festa do Bonfim, 58 desenhos; já na Série Festa de Iemanjá, são 20 desenhos; a Rampa do Mercado, com 24 desenhos; a Feira Águas de Meninos, com 59 desenhos; a Pesca do Xaréu, com 40 e a Festa da Conceição da Praia com 33. É importante que se repare que nessa ocasião ainda não constavam, nesses conjuntos, as imagens do Pelourinho, da Capoeira, as dos Temas do Candomblé nem as dos Orixás, que surgem exatamente quando muda o formato de publicação, alterando o ciclo de desenhos avulsos para os dez cadernos intitulados de “Coleção Recôncavo”, organizados por K. Paulo Hebeisen, publicado pela - ou impresso na - Tipografia Beneditina Ltda, com 1.500 exemplares de cada um dos cadernos com dimensões de 23X 15,5 cm, em brochura, distribuídos pela livraria Turista, em 1951.

O que persiste na mudança de Série para Coleção é a noção de conjunto e desenhos em linhas rápidas, pelas quais o branco do papel se ajusta para acompanhar o movimento buliçoso das figuras que caminham pelas páginas, esperando a leitura interpretativa do espectador/leitor que veria as figuras em seu lugar de encantamento.

Esses desenhos foram produzidos em 1950 e são, junto com o mural da Escola Classe do CECR, o marco zero da presença do artista em Salvador. Desenhos que consolidam o seu traço, transformados, em 1951, na Coleção Recôncavo que já não era composta só por seis séries. Passam, nesse processo, a conter dez cadernos, intitulados “Pesca do Xaréu” (1), “Pelourinho”(2), “Jogo da Capoeira”(3), “Feira de Água de Meninos”(4), “Festa do Bonfim”(5), “Conceição da Praia”(6), “Festa de Yemanjá”(7), "Rampa do Mercado” (8), “Temas de Candomblé”(9) e “Orixás(10).

As posições das feiras e das festas mudam como se estivessem reconhecendo os ciclos delas mesmas e das estações das frutas e das promessas. Na época, a publicação em formato de brochura contava com textos de Odorico Tavares, Pierre Verger, José Valadares, José Pedreira, Vasconcelos Maia, Carlos Eduardo, Wilson Rocha e do próprio Carybé. A coleção foi reeditada algumas vezes: em 1955 e em 1961 no “Mestres do Desenho: Carybé”, edição em que aparece prefácio de Jorge Amado.

Se o mural “Panorama de Salvador” é composto por um olhar imaginário do meio do mar que visa a cidade. A coleção que recebe o nome de Recôncavo expressa o movimento contrário, de quem está em Salvador, vendo vir pelo mar, tudo o que sai das cidades do recôncavo da Baia de Todos os Santos e aportam na cidade convexa. Para qualquer artista, o que ele mira é tema para a sua arte. E é isso que faz Carybé. O que pode se tornar uma contradição confusa para aqueles que tecem análises com linhas soltas. Voltando aos ciclos de Carybé, em 1962, os desenhos assumem formato de livro e passam a ser chamados por “As Sete Portas da Bahia”. Nessa edição, suspeita-se que a palavra sete teria mais a ver com nomes de feiras que existiram e pegaram fogo ou com as que ainda existem na cidade. Outra opção, talvez fosse, a provável remissão ao dia mesmo de nascimento do danado do artistas, sem quaisquer elucubrações metafisicas, os desenhos ocupam a maior parte do material, porque essa edição, em livro, há texto no início e no final. O início conta só com três textos, um do editor, um em formato de cantiga de capoeira, de Jorge Amado e o de Carybé, que assume sua escrita e é por onde transparece o seu humor poético e sintético.

A pesca do xaréu permanece, mas adquire a formação de um mar. Um mar ritmado. Seguido do Pelourinho, Capoeira, Feira de Água de Meninos, Festa do Bonfim, Festa de Iemanjá e Festa da Conceição da Praia, olha a festa se movendo. Seguidos do caderno com imagens referentes à Rampa do Mercado, depois, os Temas de Candomblé e os Orixás. Nessa edição, aparecem os desenhos dos atabaques e dos atributos dos orixás, as duas últimas partes foram escritas por Pierre Verger. O que é sucesso. Tanto que, em 1969, é reeditado pela editora Martins. Essa distribuição continua por algumas edições. Em 1976, foi novamente publicado, só que pela editora Record. A mesma que o reedita em 1987. O mesmo formato de livro vai apresentar alguma modificação em 2012, quando a Assembleia Legislativa da Bahia junto com o Instituto Carybé publicam os desenhos com mesmo título. Isso. A edição estava vinculada com as atividades de comemorações dos cem anos de nascimento de Carybé. Contudo, a composição e ordem dos conjuntos são alterados, pois as partes referentes aos Temas do Candomblé e aos Orixás são reunidos em um só fascículo, dando espaço para a compilação de novo conjunto de desenhos que é o “Mulherio”.

São figuras que dançam lembrando os peixes que saltam e volteiam, como nos desenhos inclusos no caderno da Pesca do Xaréu.

Talvez, por essa graça, o material recomponha o seu ciclo, o que possibilita que volte a ser distribuídos em fascículos, cadernos, partes que se juntam e formam um todo; o que acontece em 2014, quando o Correio da Bahia difunde os desenhos pelo período de um mês, de 21 de agosto a 21 de setembro, entregues nesses impressos aos seus assinantes do jornal, nas quintas-feiras e aos domingos. São distribuídos cerca de 500 mil, o que vai permitir nova popularização desses desenhos. A edição em fascículos ou cadernos recupera uma dimensão importante guardada pelos desenhos, o de objetos dispostos em partes, como as coisas são vendidas nas feiras. Para isso, a atenção dedicada a esses tipos de coisas demanda tempo e paciência, já que é preciso que se visite cada uma das barracas, tabuleiros, lonas comprando uma coisa aqui, outra, ali e acolá. Essa é uma dimensão que recupera a noção dos mercados livres e do tamanho dos passos e do tempo de quem vende e compra. Aquelas antigas aglomerações de pessoas que, ainda assim, conseguiam observar o mar, adivinhando o que traziam os saveiros abarrotados do Recôncavo. Olhavam tentando identificar qual era a fruta da estação pelo cheiro que cheirava e chegava longe. E se conseguia saber de tudo só mirando o peso do barco no mar. Se sabia até, por antecipação, se o caranguejo viria gordo. Isso tudo exigia disposição de entender a visada dos ciclos.

Por esses ciclos que, de onda em onda de reencontro com o mar, se chega até o tempo em que estamos, será possível que os desenhos, compostos em 1950, ainda possam ganhar novos formatos? Eis a pergunta que fica.

*Wal Souza é Pesquisadora Associada ao MAFRO/UFBA