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Publicado em 2 de dezembro de 2024 às 11:19
Maio de 1978. Pouco mais de 120 pessoas tiveram o privilégio de presenciar aquele show despretensioso que daria início à primeira turnê conjunta de Caetano Veloso e Maria Bethânia, então comemorando 15 anos de carreira. O palco era o acanhado Teatro Santo Antonio, da Escola de Teatro da Ufba. Na plateia, recheada de personagens típicos do clima de “desbunde” da época, a presença de Dona Canô, irmãos, parentes e aderentes dos dois cantores, que surgem no palco como se estivessem em casa, cantando juntos “Tudo de Novo”, canção escolhida para abrir o show.>
Novembro de 2024. Cerca de 53 mil pessoas dos mais diferentes estilos e gerações lotam a Arena Fonte Nova para acompanhar a segunda turnê da dupla. Desta vez, percorrendo o país, ocupando espaços tão ou mais gigantescos que o estádio baiano. Agora, a bordo de uma parafernália que agregou profissionalismo e alta competência técnica, mas que também rendeu momentos líricos, às vezes nostálgicos, com certeza emocionantes ao espetáculo, encerrado, vejam só, ao som de “Tudo de Novo”.>
Tudo de novo, porém, bem diferente. Aos 78 anos (Bethânia) e 82 anos (Caetano), os dois baianos trocaram o ar juvenil por uma maturidade visceral que continua encantando: tanto ao público fiel que acompanha a dupla em tantos anos de carreira quanto à juventude, que pode até desconhecer alguns dos momentos mais significativos da trajetória dos irmãos, mas se rende à sua força artística, à presença cênica, à sedução explícita, digna dos grandes artistas mundiais.>
Acertadamente, a retumbante “Alegria, Alegria” abriu o espetáculo. Ganhou o público de cara trazendo a atmosfera dos festivais de música da TV Record juntamente com o primeiro grande sucesso de Caetano Veloso, idos de 1967. Logo em seguida, “Os Mais Doces Bárbaros” evocou o esfuziante clima do espetáculo que uniu os irmãos a outros dois baianos igualmente notáveis, Gal e Gil. Ambos homenageados durante o show em momentos distintos e significativos. “Para sempre”, gritou Caetano enquanto surgia no telão-cenário imagens de Gracinha ao som de “Vaca Profana”. Gil se fez presente com “Filhos de Ghandi”.>
Ao longo de 39 canções, ora interpretadas por Caetano, ora por Bethânia, ora pelos dois, o show pontuou os momentos mais emblemáticos da carreira dos irmãos. Teve Gonzaguinha e Roberto Carlos, teve samba puro do Recôncavo (“A Donzela se Casou”, de Moreno Veloso), teve Fernando Mendes (“Você não me Ensinou a te Esquecer”). E, claro, teve homenagem à escola de samba Mangueira, lembrada pela belíssima “Sei lá Mangueira”, do portelense Paulinho da Viola.>
Os momentos entediantes do show ficaram com “Sozinho”, bela canção de Peninha prejudicada pela execução midiática à exaustão, e a nova “Deus Cuida de Mim”, referência de Caetano à onda evangélica que varre o país, canção que estranhamente se contrapõe à sua alardeada condição de ateu. Ainda bem que teve “Milagres do Povo”, com seus versos magistrais: “...os deuses sem Deus não cessam de brotar, nem cansam de esperar/ E o coração que é soberano e que é senhor/ Não cabe na escravidão, não cabe no seu não/ Não cabe em si de tanto sim/ É pura dança e sexo e glória, e paira para além da história”.>
O magnetismo e o carisma de Caetano e Bethânia fluíram fortes, como sempre, até o final do espetáculo, quando sobem as cortinas e os dois reservam um inesperado ato de amor à música, deixando o palco livre para uma descontraída exibição dos instrumentistas que acompanham o show. Ao som de “Odara”, os músicos brincam como crianças felizes correndo de um lado a outro, subindo e descendo dos praticáveis. Uma concessão? Talvez. Mas o fato de os dois artistas cederem o protagonismo à banda nesse momento final não deixa de ser revelador do elevado espírito de nobreza de quem tudo já conquistou.>
Antônio Moreno é jornalista, diretor da Companhia de Comunicação e criador do Guia do Ócio >