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Publicado em 24 de fevereiro de 2025 às 20:53
O debate sobre regulação e inovação é perene e se intensifica em momentos de disrupção tecnológica, como o atualmente provocado pela Inteligência Artificial. Nesse contexto, o AI Action Summit, realizado em Paris nesta semana, tornou-se um palco emblemático para a confrontação de duas visões distintas sobre o futuro da IA: de um lado, a abordagem norte-americana, representada pelo vice-presidente JD Vance, que defende um ambiente de regulação mínima; de outro, a perspectiva europeia, defendida pelo Presidente Francês Emmanuel Macron e pela Presidente da Comissão Europeia Ursula von der Leyen, que propõe a estruturação de marcos regulatórios para garantir previsibilidade e segurança no avanço da IA. >
A Visão Norte-Americana: a regulação como obstáculo ao progresso? >
O discurso de JD Vance apresentou uma visão liberal clássica, fundamentada na ideia de que a inovação deve ocorrer sem entraves, permitindo que o mercado defina seus próprios limites. Essa abordagem parte da premissa de que regulações impõem barreiras artificiais ao progresso, beneficiando corporações estabelecidas em detrimento de novos entrantes. >
Para Vance, a pressão por regulação parte de empresas incumbentes que buscam consolidar suas posições, criando regras que dificultem a entrada de novos concorrentes com soluções mais acessíveis e eficientes. >
Entretanto, esse argumento não faz sentido, visto que são as maiores companhias do mundo, as Big Techs, que se opõem à construção de marcos regulatórios, pois, na ausência de regras, resta a lei dos mais fortes: quem já é grande impõe seus termos, submetendo consumidores, estrangulando concorrentes e peitando governos. É isso que temos visto, por exemplo, no caso das plataformas de redes sociais e de publicidade digital: a falta de regulamentação na década de 90 criou monopólios de empresas excessivamente grandes e poderosas. >
A Perspectiva Europeia: estruturar a inovação para garantir sustentabilidade >
A União Europeia adota uma abordagem distinta, baseada na convicção de que o desenvolvimento tecnológico deve ser acompanhado por um arcabouço normativo que assegure equidade, segurança e transparência. O recente Ato de Inteligência Artificial da UE reflete essa tradição regulatória, estabelecendo diretrizes para mitigar riscos sistêmicos sem comprometer o avanço tecnológico. >
Historicamente, o modelo europeu de regulação se distingue pela busca de equilíbrio entre progresso tecnológico e proteção social. A ideia central é que um ambiente regulado, com regras claras e mecanismos de resolução de litígios, protege usuários e trabalhadores, enquanto cria condições mais estáveis para investimentos de longo prazo. >
A Agentic AI e o Dilema da Autonomia Tecnológica >
Dentro desse cenário, a adoção da Agentic AI — sistemas autônomos que podem tomar decisões e executar tarefas sem supervisão humana constante — exemplifica o desafio de harmonizar regulação e inovação. A abordagem norte-americana defende que esses sistemas sejam explorados livremente, maximizando seu potencial disruptivo, enquanto a Europa propõe um modelo de classificação ex-ante, categorizando os sistemas com base em seus potenciais riscos antes de sua comercialização. >
O desenvolvimento de agentes autônomos traz questões fundamentais que vão além da esfera puramente técnica. Questões como direitos autorais, propriedade intelectual, responsabilização legal, papéis humanos inegociáveis e as consequências do impacto no mercado de trabalho precisam ser consideradas. Além disso, é necessário discutir políticas públicas que promovam a capacitação profissional para um novo paradigma tecnológico, bem como as fontes de financiamento para essas iniciativas. >
A discussão no AI Action Summit demonstra como o processo regulatório é, essencialmente, uma expressão de escolhas políticas e ideológicas. Trata-se de definir o que a sociedade deseja conquistar, o que está disposta a perder e o que considera inegociável. A história mostra que avanços descontrolados frequentemente resultam em correções tardias e onerosas. Da mesma forma, regulações excessivas podem restringir horizontes de possibilidades ainda não inteiramente compreendidos. >
Apesar das divergências, o debate regulatório sobre IA nos EUA e na Europa — e, em menor escala, no Brasil — ocorre dentro de regimes democráticos, onde há espaço para o contraditório, instâncias de apelação e freios institucionais. No entanto, é fundamental lembrar que países não democráticos, como China, Rússia e Arábia Saudita, têm um papel significativo no desenvolvimento dessa tecnologia, operando em um ambiente regulatório opaco e muitas vezes imprevisível, e isso traz riscos que não são endereçados por legislações nacionais ou regionais.>
Lucas Reis é doutor em Comunicação e vice-presidente de Operações do Internet Advertising Bureau (IAB Brasil)>