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Andre Stangl
Publicado em 2 de fevereiro de 2025 às 09:27
O lançamento de um novo modelo de inteligência artificial (IA), desenvolvido por uma pequena startup chinesa, a DeepSeek, fez com que as ações de empresas de tecnologia nos EUA e na Europa perdessem mais de US$ 1 trilhão em valor de mercado em um único dia. A qualidade e o custo da DeepSeek abalou o mercado de tecnologia, provocando uma bagunça nas expectativas dos investidores do setor. Um domínio até então considerado exclusivo das potências ocidentais.
Essa virada no cenário da IA é surpreendente. Especialmente diante das restrições impostas pelos Estados Unidos, que limitaram o acesso da China a chips avançados da Nvidia, para manter sua vantagem tecnológica. No entanto, a DeepSeek desafiou essas barreiras e revolucionou a eficiência computacional no setor. Enquanto gigantes como OpenAI e Google dependem de mais de 16.000 GPUs para treinar seus modelos, a DeepSeek alcançou desempenho comparável com apenas 2.048 chips Nvidia H800 e um orçamento de US$ 5,6 milhões, uma fração do custo das empresas americanas.
Esse feito foi possível graças a um método inovador de processamento distribuído, o "mixture of experts", que otimiza a utilização dos chips e reduz o desperdício de energia. Ao provar que é possível desenvolver modelos de IA poderosos sem a necessidade de investimentos bilionários, a DeepSeek não apenas driblou as sanções, mas também redefiniu os paradigmas de eficiência e acessibilidade na corrida global pela inteligência artificial.
A DeepSeek não apenas abalou o mercado de IA com seu modelo altamente eficiente e acessível, mas também adotou uma estratégia open-source, desafiando a narrativa tradicional sobre competitividade, segurança e propriedade intelectual. Esse movimento coloca em xeque a supremacia dos Estados Unidos no setor e fortalece um ecossistema de desenvolvedores capazes de aprimorar a tecnologia de forma descentralizada.
Por trás desse avanço está a High-Flyer, uma empresa chinesa de investimento automatizado fundada por Liang Wenfeng e dois colegas da Universidade de Zhejiang. A empresa, que gerencia cerca de US$ 7 bilhões em ativos, utiliza inteligência artificial para desenvolver estratégias de investimento altamente sofisticadas.
O sucesso da DeepSeek não se deve a incentivos governamentais diretos, mas sim à sua capacidade de otimizar recursos e inovar no uso de tecnologia. Embora seu modelo seja altamente competitivo e oferecido gratuitamente, ainda apresenta algumas restrições em relação a temas sensíveis ao governo chinês. Seu desempenho já se equipara ao ChatGPT gratuito, mas ainda não conta com todos os recursos das versões pagas da OpenAI. Agora, o grande desafio será escalar sua infraestrutura para lidar com o crescimento explosivo de usuários, uma demanda que já está impactando a estabilidade do sistema.
Mais do que uma revolução técnica, a DeepSeek representa uma lição estratégica: criatividade, resiliência e inovação podem superar as limitações impostas por barreiras políticas e econômicas. A startup prova que não é o maior orçamento ou o acesso irrestrito a semicondutores que garantem a liderança em IA, mas sim a capacidade de fazer mais com menos. E, nesse novo jogo, a DeepSeek está redefinindo as regras.
A OpenAI acusou a DeepSeek de utilizar respostas de seus modelos, como o ChatGPT, para treinar sua própria IA por meio da “destilação de conhecimento”, uma técnica que permite replicar padrões de modelos mais avançados. Isso violaria os termos de serviço da OpenAI, que proíbem o uso de suas saídas para desenvolver concorrentes diretos. No entanto, essa acusação carrega uma contradição evidente: a própria OpenAI construiu seus modelos com base em pesquisas da academia e de outras empresas, incluindo código aberto e bancos de dados públicos. O que torna sua posição contra a DeepSeek questionável.
Mas será que o setor digital da China tem fôlego para reconfigurar o mapa global de desenvolvimento e desafiar as estratégias hegemônicas de dominação tecnológica? Durante muito tempo, os produtos industriais chineses foram associados a uma forma de produção precária e de baixo custo, impulsionada por um modelo econômico que fez do país um polo global de manufatura. O termo "Xing Ling" passou a ser usado de forma pejorativa para descrever itens considerados cópias baratas de produtos ocidentais.
Esse fenômeno não aconteceu por acaso. Ao longo das últimas décadas, inúmeras empresas ocidentais transferiram suas fábricas para a China, atraídas pelos baixos custos de produção e pela abundante oferta de mão de obra, muitas vezes explorada sob condições questionáveis. Essa dinâmica não apenas acelerou o crescimento da indústria chinesa, mas também permitiu que o país desenvolvesse expertise na fabricação de produtos similares aos ocidentais, reduzindo sua dependência tecnológica externa. Hoje, no entanto, o cenário mudou. É difícil imaginar que alguém considere um carro da BYD ou um celular da Xiaomi como "Xing Ling".
No entanto, desafios éticos persistem. O modelo "996" (trabalho das 9h às 21h, seis dias por semana) e a resistência à sindicalização ainda marcam muitas fábricas chinesas que abastecem o mercado global. O documentário Indústria Americana (American Factory, 2019), produzido pela Higher Ground, de Barack e Michelle Obama, ilustra esse cenário. A reabertura de uma fábrica da General Motors nos EUA pela chinesa Fuyao evidencia os conflitos entre diferentes modelos de trabalho e os desafios da convivência.
A China não apenas aprimorou a qualidade de seus produtos, mas também investiu pesadamente em inovação e desenvolvimento tecnológico. Esse avanço reflete não só um ganho de capacidade produtiva, mas também um reposicionamento estratégico, no qual a China deixa de ser apenas a "fábrica do mundo" para se tornar uma potência criativa e inovadora no setor digital.
Porém, o setor digital chinês enfrenta desafios significativos. Segundo Li Yuan, do The New York Times, a censura e as políticas de controle rígidas de Pequim dificultam seu crescimento. O governo de Xi Jinping tem priorizado a manufatura avançada em detrimento da economia digital, enfatizando que a "economia real" deve ser a base do desenvolvimento. Isso levou à repressão contra empresas como Alibaba, Ant Group e Didi, resultando em multas e restrições desde 2020.
A repressão ao setor privado, aliada à diplomacia agressiva de Pequim, afastou investidores estrangeiros, reduzindo investimentos, startups e IPOs. Apesar da competitividade em design e funcionalidade, as empresas chinesas de tecnologia enfrentam um cenário global hostil e um governo focado em setores industriais tradicionais, dificultando a retomada de sua liderança.
Quem sabe o entusiasmo com a DeepSeek ajude a mudar esse cenário? A cultura oriental inspirou alguns dos grandes momentos da contracultura ocidental. “Se Oriente, rapaz”, dizia o mestre Gil. Sou fascinado pela cultura tradicional chinesa, sua filosofia, medicina, culinária, artes do corpo e da mente, espiritualidade e tecnologias. Ainda que alguns aspectos como a antiga tradição dos pés de lótus, a situação do Tibet e a ausência de democracia sejam mais difíceis de engolir.
Segundo o filósofo Yuk Hui, a perspectiva eurocêntrica e a visão monocultural da história da tecnologia não só ignora as contribuições do Oriente, mas também distorce nossa compreensão do desenvolvimento técnico como um fenômeno plural. No caso da China, é mais fácil reconhecer a importância de invenções como a bússola, a imprensa e a pólvora, do que a acupuntura. Para os ocidentais, uma tecnologia só faz sentido se for explicada pela nossa ciência. Hui defende que existe um tipo de diversidade tecnológica, a tecnodiversidade, que não é apenas uma questão identitária, mas uma forma de reconhecer que as tecnologias não se desenvolvem de forma linear ou universal, mas sim como expressões das cosmologias e experiências locais.
Hui desafia a noção de que o desenvolvimento técnico ocidental é o ápice universal da civilização, apontando para os limites ecológicos e sociais desse modelo. Em seu último livro, Machine and Sovereignty: For a Planetary Thinking (Máquina e soberania: para um pensamento planetário), Hui nos ajuda a interpretar situações como o controle das vendas dos chips pela Nvidia e as sanções dos EUA que exemplificam as dinâmicas de soberania tecnológica. Para Hui, o conceito de soberania no contexto digital não pode mais ser pensado apenas em termos territoriais, mas deve incluir um entendimento das dinâmicas de poder técnico e de como as infraestruturas globais moldam essa soberania.
A tradição oracular chinesa do I Ching me ensinou a reconhecer a beleza de conversar com algo que não é apenas humano. Já tive conversas impressionantes com o I Ching e acredito que isso me ajudou a conversar com as IAs. O segredo é ter alguma abertura para cocriar novos sentidos para nossas perguntas. Por exemplo, perguntei ao I Ching sobre os desafios da DeepSeek. E saiu o hexagrama 18, “Remediar” (na tradução de Alfred Huang), com linha móvel 2. Esse hexagrama fala da necessidade de corrigir erros do passado e restaurar a ordem, enfrentando problemas herdados com paciência e discernimento.
No contexto da DeepSeek, pode simbolizar o desafio de equilibrar a rigidez da hierarquia estatal chinesa com a flexibilidade descentralizada e colaborativa da cultura digital de código aberto. A segunda linha reforça a mensagem de perseverança e confiança nos esforços daqueles que trabalham para superar esses desafios. Em outras palavras, a resposta sugere um processo natural de restauração e progresso. Vou ficar na torcida.
(Esse texto foi coescrito com uma IA)
Andre Stangl é professor e pesquisador visitante (ISC-UFBA), cresceu em Brotas, estudou Filosofia e fez doutorado na USP. MUSEU DE NOVIDADESastangl@gmail.com - oficinadelinguagensdigitais.com