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Andre Stangl
Publicado em 29 de julho de 2024 às 10:15
No último dia 19, o frágil véu da normalidade foi suspenso quando o caos se instalou em diversos países. Aeroportos enfrentaram paralisias, incapazes de administrar voos e gerenciar bagagens; hospitais ficaram impossibilitados de acessar os agendamentos de consultas; e bancos não conseguiram contabilizar valores. A tela azul de erro no Windows indicava a gravidade da situação. Tudo isso foi desencadeado por uma atualização desastrosa em um software de segurança da empresa CrowdStrike, vendido a peso de ouro para grandes corporações. Dias após o incidente, algumas empresas ainda estão lidando com os problemas decorrentes, sem mencionar o prejuízo incalculável gerado por um descuido de uma empresa que se apresenta como especialista em segurança cibernética.
Memes e teorias diversas rapidamente se espalharam pela internet, incluindo uma que mostrava Bill Gates, criador da Microsoft, tropeçando em cabos de um datacenter. Piadas à parte, alguns países escaparam praticamente ilesos do apagão, como a Rússia, a China e até o Brasil. A razão pode ser atribuída ao fato de que nesses países a infraestrutura de rede não é tão dependente do Windows, já que eles privilegiam o uso de versões locais do sistema de código aberto Linux. No entanto, essa não é a realidade do Brasil. Aqui, a explicação varia entre o alto custo do software da CrowdStrike e a popularização de versões piratas do Windows.
Seja como for, não existe uma solução totalmente segura ou infalível. Gosto muito do Linux e uso distribuição Ubuntu desde 2008. Contudo, reconheço as qualidades e limitações de cada sistema, por isso mantenho o dual boot, que me permite acessar o Windows quando necessário. Existe um grande e apaixonado debate sobre qual sistema é melhor: Linux, Windows ou iOS. Fatores como segurança e eficiência podem variar dependendo do uso. Enquanto o Linux é elogiado por sua segurança e flexibilidade, o Windows é frequentemente escolhido por sua compatibilidade com uma ampla gama de softwares e games, e o iOS é conhecido por sua integração com dispositivos da Apple e eficiência da integração com o hardware. Cada sistema tem suas vantagens e desvantagens, e a escolha ideal depende das necessidades específicas de cada usuário.
Vou citar dois exemplos para mostrar que não existe sistema infalível. Em março de 2011, uma senhora de 75 anos na Geórgia, em busca de cobre para vender como sucata, acidentalmente cortou um cabo de fibra óptica, causando um apagão na internet que afetou a Armênia, partes da Geórgia e do Azerbaijão. Esse cabo específico fornecia cerca de 90% da conectividade de internet da Armênia. O incidente deixou milhões de pessoas sem acesso à internet por até 12 horas. Agora em abril deste ano, Andres Freund, um engenheiro de software da Microsoft, foi aclamado como herói da internet após identificar e corrigir uma vulnerabilidade crítica no sistema operacional Linux. Ele descobriu uma brecha que poderia ter sido usada para um ataque, potencialmente afetando centenas de milhões de computadores com Linux ao redor do mundo.
No mar de nossa vida digital, existem riscos, assim como existem riscos em estar vivo. Os sistemas e os seres vivos precisam de alguma flexibilidade para sobreviver. Norbert Wiener, um dos criadores da cibernética, em seu livro de 1948, já destacava essa característica. É impressionante a atualidade das questões levantadas por Wiener há 76 anos atrás. Ele já falava sobre a importância da flexibilidade dos sistemas para a sobrevivência, a adaptabilidade e a capacidade de autorregulação através de feedbacks, conceitos que permanecem fundamentais na era da inteligência artificial.
Ele observou que sistemas fechados não conseguem se adaptar a mudanças imprevistas. Por isso é preciso alguma adaptabilidade, ou seja, recursividade. Um sistema, para se auto regular, precisa saber “ouvir” feedbacks. Wiener argumentava que, para um sistema ser resiliente, ele deve ser capaz de aprender e se ajustar com base nas informações que recebe, permitindo que se mantenha funcional mesmo diante de adversidades.
A cibernética surgiu como uma abordagem inovadora para estudar a relação entre a informação e os sistemas (humanos ou artificiais). É interessante notar que os primeiros cibernéticos reuniram pesquisadores de áreas tão diversas quanto matemática, física, medicina, antropologia, entre outras. Esta interdisciplinaridade foi crucial para o desenvolvimento do campo, permitindo uma compreensão mais holística e integrada dos sistemas complexos.
Os primeiros debates sobre cibernética, como as conferências Macy nas décadas de 1940 e 1950, reuniram cientistas de diversas áreas de pesquisa, exemplificando a abordagem interdisciplinar do campo. Participaram desses encontros Norbert Wiener (matemática e filosofia), John von Neumann (computação), Gregory Bateson (antropologia), Warren McCulloch (neurofisiologia), Walter Pitts (lógica e neurociência), Margaret Mead (antropologia cultural) e pesquisadores de Harvard como Arturo Rosenblueth (medicina) e Julian Bigelow (engenharia). Essa diversidade de perspectivas permitiu que os pesquisadores explorassem as questões da cibernética de uma forma que nenhuma disciplina isolada poderia alcançar.
Me chamou a atenção o fato das manchetes no Brasil destacarem o episódio como sendo um "apagão cibernético", enquanto em outros países o termo mais usado foi "global IT outage" (apagão global de TI). Acho que a escolha do termo foi oportuna (apesar do apagão denotar justamente uma falta de flexibilidade), pois precisamos voltar a estudar o começo da cibernética. Isso pode nos ajudar a repensar as estratégias de infraestrutura tecnológica, para além do foco na lucratividade ou na eficiência.
Como mostra o novo livro de Jeremy Rifkin, “A Era da Resiliência: repensando a existência da nossa espécie para nos adaptarmos a um planeta Terra imprevisível e restaurado”. Em uma entrevista recente para a revista digital Technophany, Rifkin faz críticas à eficiência como valor central da era do progresso, argumentando que a adaptabilidade é mais natural e sustentável do que a eficiência. Ele traça a história da humanidade, desde o processo evolutivo de adaptação natural até a manipulação da natureza com a Revolução Industrial, destacando como essa mudança resultou na degradação ambiental.
Rifkin também mostra como novas infraestruturas tecnológicas descentralizadas podem promover uma sociedade mais sustentável, favorecendo pequenas e médias empresas e cooperativas que incentivem a diversidade e a redundância ecológica. Ele acredita que estamos no início de uma mudança paradigmática, na qual a resiliência e a adaptabilidade se tornam centrais para o futuro. Além disso, Rifkin enfatiza a importância da empatia e da cooperação global para enfrentar os desafios das mudanças climáticas, sugerindo que um novo senso de comunidade global está emergindo, focado na sobrevivência da espécie humana e na proteção do planeta. Ou seja, a verdadeira mudança virá através da colaboração e do comprometimento com a sustentabilidade. Algo que só será possível se houver alguma abertura para mudanças.
A palavra "cibernética" deriva do termo grego "kybernētēs", que significa "timoneiro" ou "piloto". Esta origem etimológica está intimamente ligada à ideia de adaptabilidade, pois, para navegar, o timoneiro deve saber ouvir o mar. Como canta Paulinho da Viola na música “Timoneiro”: “Não sou eu que me navega / Quem me navega é o mar”. Para navegar, é preciso ajustar o curso conforme as condições do mar. Nossos sistemas digitais também devem ser capazes de se adaptar a novas circunstâncias e imprevistos. Esse apagão nos ensina a importância da resiliência, como previa a cibernética, pois existem muitas formas de navegar.
(Esse texto contou com a assistência de uma IA)
Andre Stangl é professor e educador digital, cresceu em Brotas, estudou Filosofia e fez doutorado na USP.