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Publicado em 12 de janeiro de 2025 às 05:00
André Uzêda>
Se você é soteropolitano, olha agora para um dos seus pulsos. Pode ser tanto o direito, quanto o esquerdo – em um raro momento, desde 2018, aqui a escolha de qualquer um dos lados não faz a menor diferença.>
Ao obedecer o comando sugerido, há uma chance bem razoável de você ter avistado uma fitinha discreta, já bastante gasta, amarrada na articulação que encaminha o fim do seu antebraço ao início da mão. >
A tradicional fitinha do Senhor do Bonfim é um ornamento perpétuo entre os nativos desta terra, sendo substituída à medida que se rompe pelo desgaste, na esperança da realização da trinca de desejos proferidos no momento da amarração de cada um dos nós.>
A fitinha tem um pai criador. E não é Senhor do Bonfim. E nem Oxalá. O comerciante e tipógrafo português Manoel Antônio da Silva Serva é o responsável por popularizar o filete de algodão que adorna a imagem da Bahia há mais de dois séculos. >
Silva Serva tem entre seus feitos ter criado, em 1811, o primeiro folhetim publicado em território brasileiro: o jornal a ‘Idade d’Ouro do Brasil', que fazia a defesa aberta da permanência da colônia subordinada à Portugal, quando os movimentos pela Independência começavam a ganhar corpo por aqui.>
Dois anos antes de criar o jornal favorável à Coroa portuguesa, Silva Serva foi nomeado tesoureiro da irmandade do Senhor do Bonfim. Lá, percebeu uma curiosa prática restrita a um pequeno grupo de fiéis. Eles penduravam fitinhas, medindo 47 centímetros, no corpo e nos chapéus que usavam na ida às missas.>
A centimetragem era uma referência exata ao tamanho do braço da imagem do Senhor do Bonfim, trazida de Portugal e fincada na nave central da basílica. A medida até hoje se mantém a mesma – o que garante a necessidade de dar duas voltas e três nós, até que o amuleto seja devidamente fixado.>
Ao perceber esta particularidade entre os devotos, o tipógrafo português pediu permissão da Irmandade para produzir e comercializar as tais fitinhas, revertendo o lucro para os cofres da Santa Casa. >
“Não, Datena não”>
A grande curiosidade desta história é que o tetraneto de Silva Serva é um personagem que, bem recentemente, ganhou destaque no anedotário político, ao coparticipar uma das cenas mais dantescas televisionadas na história deste país.>
No dia 15 de setembro do ano passado, durante o debate da TV Cultura para a prefeitura de São Paulo, o apresentador José Luiz Datena, do PSDB, picou uma cadeira no coach Pablo Marçal, do PRTB.>
Momentos antes, Marçal havia provocado Datena, insinuando que este seria um estuprador, além de chamá-lo de “arregão” e dizer que nem homem ele era. O apresentador, então, perdeu as estribeiras e – com perdão do infame trocadilho – sentou a cadeira em Marçal.>
Quem mediava este debate era o experiente jornalista Leão Renato Pinto Serva Neto, mais conhecido como Leão Serva. É dele a voz que grita “não, Datena não”, na vã tentativa de impedir que a agressão se consumasse.>
Em 2012, Leão Serva escreveu o livro “Tipógrafo na Colônia”, pela PubliFolha, que conta justamente a história de Manoel Antônio da Silva Serva. O autor detalha a história das fitinhas, o sucesso que se tornou e também os inúmeros livros publicados na tipografia do seu tetravô – quando Silva Serva morreu, em 1819, quem assumiu as atividades foi a esposa, Maria da Rosa, que passou a ser chamada de Viúva Serva.>
Dois anos antes do episódio da cadeirada em Pablo Marçal, no debate para os governador de São Paulo, também na TV Cultura, Leão Serva virou notícia ao proteger a jornalista Vera Magalhães, que estava sendo filmada de forma acintosa pelo deputado estadual Douglas Garcia, do Republicanos. >
Serva interveio, tirou o celular das mãos de Garcia e arremessou o aparelho longe, dedicando um adorável “vá para puta que pariu, seu filho da puta” para o folgado parlamentar.>
Não se sabe se Leão Serva é devoto do Senhor do Bonfim. Mas, caso seja, seria de bom grado que pedisse um debate mais tranquilo , entre um dos três desejos, quando forma amarrar a seu pulso a fitinha que seu antepassado ajudou a popularizar.>
Esta coluna é dedicada ao amigo Marcio Luis Ferreira Nascimento, professor da Politécnica da UFBA, que tem um interessante estudo matemático sobre a ciência no rompimento da fitinha do Bonfim.>