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Beijo, tradição e preconceito no desfile do Afoxé

O espaço para os gays, ou a falta dele, no bloco dos Filhos de Gandhy

  • Foto do(a) author(a) Nilson Marinho
  • Nilson Marinho

Publicado em 5 de março de 2025 às 05:00

Ficha de inscrição do tradicional bloco de carnaval rendeu acusações de transfobia e foi modificada Crédito: Marina Silva/CORREIO

Era a concentração dos Filhos de Gandhy no circuito Dodô na Segunda de Carnaval (dia 3). Aquela era a última vez que eles entrariam na avenida, encerrando a participação este ano. A caminho do bloco, nas proximidades do Farol da Barra, dois deles adiantavam os passos. Aparentemente, não queriam perder a partida de seus colegas de afoxé.

Estavam um ao lado do outro, passo a passo e de mãos dadas. Eram um casal. A comprovação da relação foi um beijo rápido e tímido ao atravessarem a corda. No bloco, nenhum estranhamento em relação à cena. Tudo na maior normalidade. Fora dali, no entanto, enquanto eles ainda caminhavam em direção aos outros cerca de 10 mil integrantes, os comentários maldosos vieram.

“Agora, vejam, dois negões [em referência à cor dos homens], barbudos, se beijando. Acabou o Gandhy”, disparou uma mulher com abadá do Me Abraça, bloco comandado por Durval Lelys. A amiga riu e reforçou o veneno. “Acabou o Carnaval para nós, mulheres héteros”.

Os comentários das desconhecidas não chegaram aos ouvidos do casal. Antes disso, foram abafados pelos agogôs do afoxé, que se apressava para preencher a Avenida Oceânica de azul, branco e cheiro de alfazema.

Falas maldosas em relação aos Filhos de Gandhy assumidamente gays na avenida também foram disseminadas na internet, após o bloco ter sido acusado de transfobia por não permitir associados que não fossem homens cis – ou seja, aqueles que se identificam com o gênero com o qual nasceram.

Homens trans, portanto, estariam impedidos de vestir as inconfundíveis indumentárias. Após muita pressão, a situação foi repensada pela diretoria, que, ao voltar atrás, afirmou que “a sociedade está em constante evolução e que debates sobre inclusão são fundamentais”.

Confundindo identidade de gênero com sexualidade, muitos associados, de cara limpa e perfil aberto, teceram comentários negativos em relação à participação da comunidade LGBTQIA+ nas redes sociais. “Estamos virando chacota. Todo ano aparece mais para queimar a gente. Quer beijar outro homem, cola em Cláudia”, disse um usuário do Instagram, referindo-se aos blocos da cantora, que concentram parte da comunidade LGBTQIA+.

O CORREIO entrou em contato com todos os autores dos comentários acima, além de outros que não foram citados na matéria. Todos visualizaram as mensagens, mas não responderam. Apenas um deles quis opinar, com a condição de anonimato.

“Não que eu seja preconceituoso, cada um faz o que quer, mas precisamos manter postura e desfilar mantendo nossas tradições. Não somos um bloco para isso. Quer beijar outro semelhante, beije, mas precisa ser com nosso manto?”, questionou.

Perguntado sobre a tradicional troca de colares dos Gandhys héteros por beijos de mulheres, ele se esquivou. “Mas aí estamos falando de algo normal: homem e mulher, um afeto entre sexos opostos, sem confusão”, emendou.

Os homens gays que frequentam o afoxé dizem não sofrer qualquer tipo de retaliação dentro das cordas. Criaram, inclusive, alguns códigos de identificação. Evitam a parte da frente do bloco, onde a maioria dos associados são pessoas mais velhas, apegadas às tradições. Preferem o fundo, onde se reconhecem com uma simples troca de olhares. Muitos dizem que, em nome do respeito, evitam demonstrar carinho durante o desfile.

“Infelizmente, isso ainda causa desconforto. Deveria? Não! Somos duas pessoas que se amam e que, naturalmente, demonstram isso. Mas decidimos evitar para não ouvir piadinhas e comentários ofensivos, de dentro e de fora do afoxé. Certeza que isso acabaria com o nosso Carnaval”, comenta o psicólogo Fábio Pereira, de 35 anos. Seu marido, o enfermeiro Carlos Fontes, de 42 anos, concorda: “No máximo, um dedinho entrelaçado no outro, uma mão no ombro. É chato não poder ser quem a gente é, mas, infelizmente, nos adequamos”, completou.

C.F., publicitário de 32 anos, sai no Gandhy há mais de 10 anos, influenciado pelo irmão, que é associado há mais tempo. Prefere a ala mais ao fundo do bloco. “Não sei se todos que estão lá sabem sobre isso, mas é algo involuntário, sabe? Chegamos, nos olhamos, nos sentimos seguros, ficamos e seguimos pela avenida. Eu, por exemplo, não vejo qualquer problema em beijar alguém do meu interesse, seja dentro ou fora do bloco. As tradições não podem sobrepor o direito de sermos quem somos”, comentou.

O bloco presta homenagem ao ativista e líder religioso indiano Mahatma Gandhi, conhecido como um defensor da não violência. Curiosamente, Gandhi também foi descrito, na biografia Great Soul: Mahatma Gandhi and His Struggle with India (2011), do jornalista Joseph Lelyveld, como um homem bissexual que abandonou sua esposa para dividir o mesmo teto com um fisiculturista alemão de origem judaica.

“Seu retrato (o único) está no aparador da lareira, em meu quarto. A lareira fica diante da cama. Algodão e vaselina sempre me lembram você. A intenção é mostrar, a você e a mim, o quanto você tomou posse de meu corpo. Isso é escravidão com vingança”, teria escrito Gandhi em uma carta ao arquiteto Hermann Kallenbach. Dois anos mais tarde, ele reafirmaria a suposta relação homoafetiva: “Embora eu ame e tenha quase adoração por Andrews [outro amigo], eu não trocaria você por ele. Você continua a ser o mais querido e mais próximo a mim”.

O projeto Correio Folia é uma realização do jornal Correio com apoio institucional da Prefeitura Municipal de Salvador