Que bloco é esse? Conheça a história de resistência do Ilê Aiyê

Mais Belo dos Belos, que surgiu para garantir direito de negros desfilarem no Carnaval, soma meio século de impacto social

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  • Larissa Almeida

Publicado em 31 de janeiro de 2024 às 06:30

Mãe Hilda, líder espiritual que abençoa os dois no tema e na trajetória
Mãe Hilda, líder espiritual que abençoa os dois no tema e na trajetória Crédito: Arquivo Correio

Era década de 70 quando os blocos de mortalha caíram nas graças dos foliões que curtiam o Carnaval de Salvador. Para desfilar, contudo, os candidatos precisavam apresentar documento com foto e endereço. Visto como um procedimento normal, ao longo dos anos, as exigências se revelaram um instrumento silencioso de exclusão: enquanto os  brancos eram liberados, os  negros e periféricos eram recusados. A constatação dessa realidade causava revolta, embora o sentimento de impotência desencorajasse os esforços para mudar tal cenário. Mas isso foi até a primavera de 1974, quando o mundo negro passou a ser mostrado através do Ilê Aiyê, o primeiro bloco afro do Brasil que, em 2024, completa 50 anos de história e resistência.

Por trás da fundação do Ilê, ocorrida no dia 1º de novembro de 1974, estavam as cabeças pensantes de Antônio Carlos dos Santos Vovô e Apolônio de Jesus, o ‘Popó’, que se organizaram com outros amigos do Curuzu, no bairro da Liberdade, em Salvador, para criar um bloco ‘só de negão’ cujo nome seria Poder Negro. “Nós tivemos a ideia de criar o bloco, até porque os blocos mais famosos da época não aceitavam pessoas negras. Nós observávamos isso. A juventude negra, se quisesse se divertir, saía nos blocos de índio ou nos de bairros, mas não tinha um bloco específico do povo negro. Já tínhamos conversado sobre essa questão racial e o objetivo foi criar um bloco só de negro para confrontar essa situação”, conta Antônio Carlos dos Santos Vovô.

O nome foi desaconselhado por Mãe Hilda Jitolu, mãe de Vovô, que advertiu para a possibilidade de represálias, visto que ainda havia uma ditadura militar em curso no Brasil. Por isso, partiu dela a sugestão do nome Ilê Aiyê, palavras em iorubá que significam, respectivamente, ‘casa’ e ‘terra’. O nome, então, passou a ser entendido como ‘Casa da Terra’. Ao mesmo tempo, Mãe Hilda deixou de ser ‘consultora’ para se tornar a conselheira espiritual do Ilê, inclusive abrindo as portas do terreiro Ilê Axé Jitolu – que comandava como mãe de santo – para ser sede do grupo musical, no Curuzu. A decisão foi o pontapé inicial para que a história da ialorixá se entrelaçasse com o bloco, formando uma união que duraria até o fim da sua vida.

Os medos de Mãe Hilda Jitolu

Durante os três meses subsequentes a criação do bloco, o foco de Vovô, Popó e demais entusiastas recaiu sobre o desfile de Carnaval. Em contrapartida, quanto mais perto chegava de fevereiro de 1975, mais receio Mãe Hilda Jitolu tinha. O registro dessas aflições chegou a ser exposto durante a 43ª Noite da Beleza Negra, no último dia 13 de janeiro, em formato de áudio. De acordo com Vovô, os medos da sua mãe eram em relação à segurança daqueles que estavam decididos a criar um novo olhar sobre a população preta por meio da festa carnavalesca.

“Os medos que ela teve foi de sermos presos. Quando eu falei que o bloco ia sair, ela disse que também iria: ‘se os meus filhos e os filhos das minhas amigas forem presos, eu também vou’. Ela saiu no carro alegórico porque manifestou essa preocupação. Nós não estávamos preocupados com a questão da ditadura, mas tinha esse risco”, relembra Vovô.

Diretora-executiva do Instituto da Mulher Negra Mãe Hilda Jitolu, jornalista e mestre em Estudos Étnicos e Africanos, Valéria Lima é neta da ialorixá e está desenvolvendo uma biografia sobre a trajetória da avó. Quanto aos receios da matriarca em relação ao primeiro desfile, ela detalha o contexto político que atravessava a sociedade soteropolitana à época.

“Década de 70 havia ditadura militar e ninguém sabia como o Ilê seria visto, qual seria a reação da polícia. Naquela época, um grupo de homens e mulheres negros, que ninguém sabia de onde estavam vindo, desfilando no Carnaval de Salvador, era imprevisível. Ela verbalizou, inúmeras vezes ao longo da vida, que se os filhos  fossem presos, ela iria antes deles, por isso, a presença no primeiro desfile”, diz Valéria.

É também por conta dos medos de Mãe Hilda que surgiu o tradicional ritual de proteção antes da saída do Mais Belo dos Belos do Curuzu, com direito a banho de pipoca, pó de pemba e milho branco. “Na saída do Ilê, no sábado de Carnaval, ela realizou o ritual pedindo paz e proteção para que o bloco pudesse desfilar sem problemas. Muita gente, que não é do candomblé, ao longo dos anos entendeu que era padê [ritual para Exú], mas não tem nada a ver”, pontua.

“O ritual que acontece na saída do Ilê tem a ver com dois voduns, que é Lissá [Oxalá], pedindo proteção e para que ele tenha misericórdia para que o mal não aconteça, por isso se usa o milho branco e o canto para Oxalá na saída do Ilê. E ela colocava também as pipocas, porque era de Azansú [Obaluaê]”, esclarece.

Primeiro desfile

Em fevereiro de 1975, o Ilê Aiyê subiu a Ladeira do Curuzu pela primeira vez. A apresentação conseguiu reunir 100 pessoas, incluindo 15 músicos. Vovô conta que muitos foliões não foram porque a família temia as represálias das autoridades. Antes do dia da estreia, a hostilidade da mídia em reação à divulgação do bloco – que não poupou panfletos e disseminação boca a boca – simbolizou o tipo de recepção que eles temiam das forças policiais. Ainda assim, os liderados de Mãe Hilda não desistiram.

O investimento para colocar o bloco na rua saiu do bolso dos seus fundadores e primeiros seguidores. Parte dos instrumentos foram custeados por Vovô e Popó, enquanto outra parcela foi emprestada pelo Bloco da Liberdade. O Ilê saiu inteiramente por conta própria, sem dispor de nenhum tipo de patrocínio.

Como se não fossem suficientes as dificuldades enfrentadas durante a preparação, no início do percurso do desfile, houve queda de energia no Curuzu, conforme relata Vovô. Ainda assim, nada apagou o brilho e a determinação do Ilê Aiyê. “O primeiro ano foi muito emocionante. Faltou energia na ladeira e, no Largo do Curuzu, um menino me entregou uma foto de um povo de Burundi, da África Oriental. Foi aí que, a partir de 76, passamos a sair com Carnaval temático falando do povo negro de África”, afirma Vovô.

Beleza Negra

Mesmo diante das adversidades, o Ilê Aiyê defendeu sua existência e seus ideais nos carnavais que se seguiram após a estreia. Em 1977, o bloco atraiu mil foliões e o bairro da Liberdade passou a ser considerado um espaço negro de resistência, que funcionaria como ‘Harlem baiano’, fazendo alusão ao bairro novaiorquino, em Manhattan, conhecido por ser um espaço de resistência de afroamericanos.  A resistência foi firme e, dois anos depois, o local sediou o primeiro concurso de beleza negra do Brasil. O intuito inicial era escolher a rainha do Ilê, chamada de Deusa do Ébano. O evento para a escolha da figura feminina que representaria o mundo negro, por sua vez, foi intitulado Noite da Beleza Negra, a partir de 1980.

“A escolha da rainha era um concurso comum. Já a Noite da Beleza Negra chamou atenção, todo mundo passou a querer saber o que era isso e nós começamos a procurar um espaço adequado do clube para fazer o evento”, conta Vovô.

Guellwaar Adún, poeta e estudioso do Ilê Aiyê, aponta que o concurso se tornou, à época, uma ocasião para cultuar o autoamor entre os negros para além dos terreiros de candomblé. “Dete Lima e Vovô têm falado repetida e amplamente sobre esse ponto. Na tentativa de parafraseá-los, eu diria que a Noite da Beleza Negra nasceu devido a capacidade de autoamor, cultuada em nossos terreiros de candomblé. O Brasil, historicamente, odeia mulheres e homens negros, tentou e ainda tenta nos incutir o sentimento de auto ódio. A Noite da Beleza Negra coloca em destaque a mulher negra que, sistematicamente, é vítima de violências em nossa sociedade”, ressalta.

O concurso não segue a lógica dos concursos populares de beleza. É que, além de boa aparência física, a Deusa do Ébano é escolhida por seu carisma, ativismo, consciência de pertencimento étnico-racial e performance diante da plateia e jurados. A ideia, durante a criação, era justamente subverter os eventos tradicionais de beleza e ir além da estética para criar um espaço de exaltação da mulher negra.

Com 43 Deusas do Ébano escolhidas até 2024, a rainha atual é Larissa Valéria Sá Sacramento, de 29 anos, moradora do Curuzu. A coroação da rainha, no dia 13 de janeiro, também contou com o anúncio de que o concurso se tornará Patrimônio Imaterial da Bahia.

Mais que Carnaval

A partir da década de 80, o Ilê Aiyê ganhou o mundo. Com uma identidade própria – perfil azeviche – e com as cores amarela, vermelha, preta e branca como marca, o Ilê lançou ‘Canto Negro I’, o primeiro disco do bloco, em 1984, reunindo canções de sucesso como ‘Que bloco é esse?’, ‘Mãe Preta’ e ‘Depois que o Ilê passar’. No ano seguinte, o Grupo de Dança do Ilê Aiyê é criado para fazer parte do cortejo coreografado da Noite da Beleza, ampliando a estrutura do Ilê.

A ampliação também ocorreu nas frentes de atuação do bloco. Em 1987, Benim e Bahia começam a estreitar relações em 1987 com uma viagem ao país africano do prefeito de Salvador da época, Mário Kertész, e de uma comitiva da qual o Ilê Aiyê fez parte. A partir disso, houve um intercâmbio cultural com a inauguração, no Pelourinho, da Casa do Benin, e a instalação, no país africano, da Casa do Brasil.

Liderada por Mãe Hilda, as ações sociais começam a ser implantadas a partir da criação da Escola Mãe Hilda, em 1988, que tem como foco temático a equidade racial e de gênero. As iniciativas na área da educação crescem na década de 90, quando a escola comunitária passa a fazer parte do Projeto de Extensão Pedagógica e a ter atuação conjunta com a Escola de Percussão Band’Erê, criada em 1992, e a Escola Profissionalizante.

O legado da ialorixá reverbera até hoje. Não à toa, em 2021, o Instituto Mulher Negra Mãe Hilda Jitolu foi fundado para dar continuidade à sua contribuição através de uma organização feminista negra, que visa garantir acesso a direitos para meninas e mulheres cis e transexuais negras através de ações voltadas para a educação, direitos sociais e direitos humanos.

“O instituto nasce como uma forma de manter vivo o legado das mulheres negras e, principalmente, o legado de Mãe Hilda Jitolu, que tanto contribuiu para que estivéssemos aqui. Ela tem uma história paralela ao Ilê, foi uma referência para a juventude numa época em que o movimento negro não dialogava com as religiões de matrizes africanas, ela dialogava. Sem ela, provavelmente o Ilê não existiria”, afirma Valéria Lima, diretora-executiva do instituto.

*Com orientação da subchefe de reportagem Monique Lôbo