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Projeto Comprova
Publicado em 22 de março de 2024 às 19:46
Falso: Não é verdade que o atual surto de dengue no Brasil tem relação com um programa de combate à doença financiado pela Fundação Bill & Melinda Gates, como alega publicação feita em rede social. A parceria do Programa Mundial de Mosquitos com a Fiocruz foi fechada em março de 2023 para a instalação de uma biofábrica, ainda em construção, que vai criar populações do Aedes aegypti com a bactéria Wolbachia. O método reduz as chances de infecção e se mostrou eficaz e seguro em diversas cidades do mundo, como Niterói (RJ). Além disso, os mosquitos não são geneticamente modificados e a entidade não pertence à ONU.>
Conteúdo investigado: Post diz que “surto de dengue no Brasil aumenta em 400% após os mosquitos OGM [geneticamente modificados] de Bill Gates serem liberados propositalmente”. O texto cita o “Programa Mundial de Mosquitos da ONU” e um “plano para liberar bilhões de mosquitos geneticamente editados no Brasil durante um período de 10 anos”. A publicação afirma ainda que “um ano após o início desta iniciativa ‘genial’ contra os mosquitos, desafiando a própria natureza, os casos de dengue aumentaram exponencialmente, em vez de diminuir”. E questiona a eficácia da vacina Qdenga: “será que funciona? Os efeitos adversos começam a ser reportados, pelo próprio Diretor do Departamento do Programa Nacional de Imunização, Eder Gatti”. >
Onde foi publicado: X. >
Conclusão do Comprova: O Programa Mundial de Mosquitos (WMP, em inglês), parcialmente financiado pela Fundação Bill & Melinda Gates, não tem relação com o atual surto de dengue no Brasil, diferentemente do que afirma post viral. O projeto foi fundado pelo cientista Scott O’Neill, que estuda a dengue desde os anos 1990 e, ao contrário do que diz a publicação falsa, não tem relação com a ONU. A fundação é uma associação sem fins lucrativos que “trabalha para proteger a comunidade global de doenças transmitidas por mosquitos, como dengue, zika, febre amarela e chikungunya”.>
Em março de 2023, a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e o Ministério da Saúde fecharam uma nova parceria com a entidade para expandir a atuação do programa com a instalação da maior biofábrica – instalação que utiliza processos de biotecnologia para cultivar organismos vivos – do mundo no Brasil. O local vai abrigar a criação de mosquitos Aedes aegypti com a bactéria Wolbachia, método do projeto de combate à dengue, zika e chikungunya. Diferentemente do que alega o post aqui investigado, a biofábrica ainda não foi inaugurada. O local começou a ser construído em março deste ano em uma unidade do Instituto de Tecnologia do Paraná (Tecpar), em Curitiba. A previsão é que comece a operar em 2025, segundo o líder de Relações Institucionais e Governamentais do WMP, Diogo Chalegre.>
O post também mente ao afirmar que o método contribui para o avanço das doenças transmitidas pelo Aedes aegypti. Em Niterói, no Rio de Janeiro, por exemplo, o programa em parceria com a Fiocruz começou em 2015 e, desde então, os casos de dengue vêm diminuindo ano após ano. Mesmo agora com o surto, a cidade, que tem mais de 500 mil habitantes, contabiliza quase 600 casos prováveis da doença e nenhum óbito.>
No restante do país, de fato, houve crescimento de 400% no número de diagnósticos da doença em relação a 2023. O motivo, no entanto, não envolve o Programa Mundial de Mosquitos. “Nós temos um aumento natural de casos, frequentemente a cada cinco ou seis anos, dentro de todo o ciclo histórico de doença”, explicou ao Comprova o médico infectologista Jean Gorinchteyn, do Hospital Albert Einstein e do Hospital Emílio Ribas. >
Jean Gorinchteyn
Médico infectologista do Hospital Albert Einstein e do Hospital Emílio Ribas.Atualmente, a campanha de vacinação contra a dengue no Brasil contempla jovens de 10 a 14 anos de idade com doses da Qdenga, fabricada pelo laboratório japonês Takeda. Uma nota técnica emitida pelo Ministério da Saúde esclareceu que os efeitos adversos após a imunização, sendo a maioria reação alérgica, são raros e não evoluem para internações. A vacina pode reduzir em 80% os casos sintomáticos da doença e em 90% as hospitalizações, segundo a farmacêutica. >
Falso, para o Comprova, é todo conteúdo inventado ou que tenha sofrido edições para mudar o seu significado original e divulgado de modo deliberado para espalhar uma falsidade.>
Alcance da publicação: O Comprova investiga os conteúdos suspeitos com maior alcance nas redes sociais. Até o dia 21 de março, a publicação somava 163 mil visualizações e mais de sete mil interações.>
Como verificamos: Começamos a verificação buscando informações sobre o Programa Mundial de Mosquitos no site oficial da instituição. Parte das alegações do post foi desmentida no canal da própria entidade, assim como no site da Fundação Bill & Melinda Gates. Também encontramos dados sobre o surto de dengue no portal da Fiocruz e do Ministério da Saúde. Entrevistamos o médico infectologista Jean Gorinchteyn e um porta-voz do Programa Mundial de Mosquitos.>
Os mosquitos criados pelo programa financiado por Bill Gates não são geneticamente modificados, como alega o post aqui verificado. OGM é a sigla para “organismos geneticamente modificados”, ou seja, que tiveram alterações genéticas manipuladas por cientistas. >
O programa do empresário é considerado natural e sustentável por não apresentar riscos ao ecossistema em que é liberado, diferentemente do uso de inseticidas em larga escala, por exemplo. A técnica é diferente daquela desenvolvida pela empresa Oxitec, que também atua no Brasil. >
Um dos laboratórios de criação dos mosquitos do WMP está localizado em Medellín, na Colômbia. >
Bill Gates
.São produzidos cerca de 30 milhões de mosquitos por semana. >
Na fábrica, os cientistas introduzem a bactéria Wolbachia nos ovos do Aedes aegypti, sem alteração genética. Essa bactéria está presente em quase 60% dos insetos no mundo, incluindo moscas-das-frutas, mariposas, libélulas e borboletas, e pode impedir que os vírus da dengue, zika e chikungunya se desenvolvam no mosquito. Consequentemente, reduz a chance de o Aedes aegypti transmitir essas doenças para humanos.>
“A Wolbachia vive dentro das células dos insetos e é transmitida de uma geração para outra através dos ovos dos insetos. Os mosquitos Aedes aegypti normalmente não transmitem Wolbachia, mas muitos outros mosquitos o fazem”, diz o site do programa. “Análises de risco independentes indicam que a libertação de mosquitos Wolbachia representa um risco insignificante para os seres humanos e para o ambiente.”>
Os mosquitos são colocados em pequenas caixas e liberados no ambiente com ajuda da população local ao longo de 12 a 20 semanas. Outra opção oferecida pelo programa é a instalação de cápsulas, com ovos já criados com a Wolbachia, nas ruas ou dentro das casas dos moradores do local estudado. A própria população fica responsável por colocar água nas caixas até a eclosão do mosquito adulto, que ocorre entre uma e duas semanas.>
Um teste realizado entre 2017 e 2020 na cidade de Yogyakarta, na Indonésia, mostrou uma redução de 77% na incidência de dengue e uma queda de 86% no número de hospitalizações pela doença na comunidade que recebeu o método com a Wolbachia. O programa comparou dados de uma região não tratada com o local que aplicou o teste. Na área com os mosquitos selvagens, foram registrados 318 casos de dengue e 102 internações. Já na região tratada, foram 67 casos e 13 hospitalizações.>
A Fundação Bill & Melinda Gates financia o trabalho com a Wolbachia desde 2004 através do Programa Grandes Desafios na Saúde Global, iniciativa criada pela própria instituição. O investimento ultrapassa a marca de US$ 230 milhões, incluindo o aporte de US$ 50 milhões (respectivamente, R$ 1,1 bilhão e R$ 250 milhões) citado pelo post aqui investigado. O projeto recebe apoio de outras 23 entidades, incluindo os governos do Brasil, dos Estados Unidos, da Austrália, da Nova Zelândia, de El Salvador, além da empresa KPMG, o banco australiano Macquarie, a Fundação Comunitária do Vale do Silício e outras instituições ligadas à famílias de filantropos.>
A cidade do Rio de Janeiro foi a primeira a receber a iniciativa no Brasil, em 2014. Os projetos em larga escala, no entanto, começaram a partir de 2017, com a liberação dos mosquitos não só na capital fluminense, mas também em Niterói (RJ), Belo Horizonte, (MG), Campo Grande (MS) e Petrolina (PE). Em 2024, a pedido do Ministério da Saúde, o projeto será ampliado para outros seis municípios: Joinville (SC), Foz do Iguaçu (PR), Londrina (PR), Presidente Prudente (SP), Uberlândia (MG) e Natal (RN). >
Os trabalhos são acompanhados pela Fiocruz, que destaca a redução de 70% dos casos de dengue, 60% de chikungunya e 40% de zika em Niterói. >
Luciano Moreira
Pesquisador da fundação e Líder do Programa Mundial de Mosquitos BrasilOs resultados dos demais municípios ainda estão sendo levantados. >
Segundo o líder de Relações Institucionais e Governamentais do WMP, Diogo Chalegre, o engajamento da população local tem sido expressivo. “Antes de liberarmos, fazemos uma atividade chamada de Engajamento Comunitário, onde informamos a população sobre nossas atividades. Ao final dela, fazemos uma pesquisa de aceitação. Os números de aceitação giram em torno de 90%”, disse.>
Os resultados promissores levaram o governo brasileiro a firmar uma nova parceria com o projeto em março de 2023. A maior biofábrica do mundo está sendo construída em Curitiba e deve começar a operar em 2025, com a criação de 100 milhões de mosquitos por semana, atendendo 70 milhões de pessoas nos próximos 10 anos. O programa já conta com uma instalação no Rio de Janeiro, inaugurada em 2014. Além disso, uma terceira biofábrica construída em Belo Horizonte está passando por testes operacionais e vai atender 22 municípios da Bacia do Paraopeba a partir do segundo semestre deste ano.>
“Não existe nenhuma relação entre esse surto atual com a liberação de mosquitos que têm no seu interior a Wolbachia ou mosquitos transgênicos. Pelo contrário, os lugares que fizeram isso conseguiram diminuir a população dos mosquitos, infelizmente de uma forma temporária. É um mecanismo extremamente caro, que impede que o gestor público institua isso como uma forma de controle para a epidemia”, pondera o médico infectologista Jean Gorinchteyn, que já foi Secretário de Saúde do estado de São Paulo.>
A vacina Qdenga, do laboratório japonês Takeda, é recomendada pela Organização Mundial da Saúde para combate à dengue desde outubro de 2023. Na ocasião, a presidente do Grupo Consultivo Estratégico de Peritos em Imunização da OMS, Hanna Nohynek, enfatizou a eficácia do imunizante. “Essa é a primeira vacina contra dengue com potencial para uso mais amplo. Muitos países estão enfrentando surtos devastadores de dengue e prevemos o agravamento geral da situação com as alterações climáticas”, disse. >
A farmacêutica, aliás, já recebeu financiamento da Fundação Bill & Melinda Gates, como afirma o post investigado. Em 2016, a instituição anunciou um aporte de U$ 38 milhões no programa de desenvolvimento e registro de uma vacina contra a poliomielite para 70 países em desenvolvimento. A Takeda, que está ativa há 70 anos, também trabalha com vacinas contra covid-19, zika e influenza.>
No Brasil, a Anvisa aprovou o registro da Qdenga em março de 2023. Segundo a agência, “o valor de eficácia global da vacina, que é o objetivo primário do estudo clínico apresentado, atingiu o patamar de 80,2%”, combatendo os quatro diferentes sorotipos do vírus causador da doença. A bula indica o imunizante para pessoas de 4 a 60 anos, mas o Ministério da Saúde incluiu apenas jovens de 10 a 14 anos na campanha em razão da baixa produção pelo laboratório.>
Em março deste ano, o governo emitiu uma nota técnica sobre o andamento da campanha. No universo de 365 mil doses aplicadas no país desde 2023, foram identificados 16 casos de reações alérgicas graves. Todos se recuperaram e não houve hospitalizações. Naquele momento, o diretor do Departamento do Programa Nacional de Imunizações, Eder Gatti, reafirmou que os benefícios superam os riscos. “Nem todos os casos estão relacionados à estratégia de vacinação. É um número pequeno frente ao número de doses aplicadas. Mas o Ministério da Saúde, prezando pela transparência e segurança, fez uma nota técnica de acompanhamento após a discussão com especialistas”, afirmou.>
O que diz o responsável pela publicação: O Comprova entrou em contato com Karina Michelin, autora do post, mas não recebeu retorno até o momento da publicação deste texto. Ela já teve diversos conteúdos classificados como falso ou enganoso pelo Comprova.>
O que podemos aprender com esta verificação: A publicação faz uso do nome de Bill Gates, bilionário cujo nome é constantemente citado em teorias da conspiração, para criar um tom alarmista sobre um assunto que se tornou rotineiro. O texto mistura nomes de instituições globais, como a ONU, e inclui diversos números para tentar passar credibilidade à mensagem, mas não se preocupa com a veracidade e o contexto das informações. O projeto da biofábrica citada no texto, por exemplo, faz parte de um plano real, mas o laboratório sequer foi inaugurado, portanto, não pode ter qualquer relação com o atual surto de dengue. Como são temas de interesse público, informações sobre doenças e vacinas podem ser confirmadas pelo próprio leitor em sites oficiais de órgãos públicos e também das instituições privadas, além da imprensa.>
Por que investigamos: O Comprova monitora conteúdos suspeitos publicados em redes sociais e aplicativos de mensagem sobre políticas públicas e eleições no âmbito federal e abre investigações para aquelas publicações que obtiveram maior alcance e engajamento. Você também pode sugerir verificações pelo WhatsApp +55 11 97045-4984.>
Outras checagens sobre o tema: As alegações do post aqui verificado também foram alvo de investigação da AFP, que mostrou que o mesmo texto tem versões em inglês e espanhol. O Comprova já publicou explicações sobre o programa de liberação de mosquitos geneticamente modificados no Brasil e esclareceu falas com desinformação sobre a vacina Qdenga.>