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Projeto Comprova
Publicado em 28 de fevereiro de 2024 às 12:23
Contextualizando: Publicação que diz que o endocrinologista Flávio Adsuara Cadegiani, após ser inocentado de crimes no Brasil, recebeu prêmio nos EUA, omite contexto relevante. O médico foi um dos fundadores da instituição que fez a homenagem. Criada na pandemia da covid-19, a entidade é formada por profissionais que defendem o uso de medicamentos sem comprovação científica de eficácia para tratar a doença, como a ivermectina. Cadegiani é investigado por estudo realizado com o medicamento proxalutamida em pessoas internadas com covid-19 no qual houve a morte de 200 pacientes no Amazonas. Ele foi inocentado em processos administrativos nos Conselhos Regionais de Medicina do Amazonas e do Rio Grande do Sul, mas ainda responde a dois processos na Justiça Federal por supostas irregularidades no estudo, um deles criminal (Amazonas) e uma ação civil pública (Rio Grande do Sul).>
Conteúdo investigado: Uma publicação de uma ex-integrante do governo Bolsonaro sobre o médico Flávio Cadegiani aponta que o endocrinologista recebeu prêmio de reconhecimento pela contribuição científica nos Estados Unidos. Postagem acompanha manchete “Depois de ser inocentado de crimes no Brasil, cientista brasileiro é premiado nos EUA”. A matéria, publicada pelo Médicos pela Vida, associação que defende o “tratamento precoce” contra covid-19, afirma que Cadegiani foi atacado pela imprensa por estudo com proxalutamida em 2021 e que foi injustamente alvo de busca e apreensão. O texto também afirma que o estudo de Cadegiani foi reconhecido nas mais renomadas instituições científicas do mundo como de alta qualidade. >
Onde foi publicado: Instagram, X (antigo Twitter), Facebook e YouTube. >
Contextualizando: O médico Flávio Cadegiani, investigado no Brasil por supostas irregularidades em estudo para tratar pacientes com covid-19 com o medicamento proxalutamida, ainda não aprovado para tratar a doença, recebeu um prêmio nos Estados Unidos, no dia 2 de fevereiro, por “Contribuições para a Excelência em Pesquisa”. A notícia repercutiu nas redes sociais, com um tom de que seria uma prova de que o médico teria sofrido perseguição em seu país. O prêmio, porém, foi concedido pela Front Line COVID-19 Critical Care Alliance (FLCCC), que tem Cadegiani como um de seus membros-fundadores e defende o tratamento precoce contra a covid-19 com medicamentos como a ivermectina e a hidroxicloroquina, que não são recomendados pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para tratamento da doença. >
O prêmio foi entregue pelos médicos Paul Marik e Pierre Kory, diretor científico e presidente e diretor médico da FLCCC, respectivamente. Em novembro de 2021, um artigo escrito pelos dois foi retirado de publicação pela revista científica Journal of Intensive Care Medicine. A retirada aconteceu após o hospital cujos dados de mortalidade foram utilizados no estudo entrar em contato com o periódico e sinalizado erro nos números da pesquisa. Dessa forma, o artigo, intitulado “Clinical and Scientific Rationale for the ‘MATH+’ Hospital Treatment Protocol for COVID-19”, passava a falsa impressão de que o protocolo defendido pela FLCCC para o tratamento de pessoas hospitalizadas com covid-19, chamado “MATH+”, que inclui medicamentos como hidroxicloroquina e ivermectina, tinha tido resultado positivo na redução do número de mortes. Os outros médicos que assinam o estudo também são da organização. >
Os médicos Pierre Kory e Flávio Cadegiani participaram de um outro estudo sobre o uso da ivermectina como tratamento profilático da covid-19, publicado na revista Cureus, que, posteriormente, divulgou uma errata ao tomar conhecimento que os autores haviam omitido informações sobre conflitos de interesses. Segundo a errata, Cadegiani não informou ser “consultor pago (US$ 1,6 mil, cerca de R$ 8 mil) da Vitamedic, fabricante de ivermectina” e “membro fundador da Front Line COVID-19 Critical Care Alliance (FLCCC), uma organização que promove a ivermectina como tratamento da covid-19”.>
Já Pierre Kory omitiu ser presidente e diretor médico da FLCCC. A errata ainda diz que, em fevereiro de 2022, “Kory abriu um serviço privado de telessaúde para avaliar e tratar pacientes com covid aguda, covid de longa duração e síndromes pós-vacinais”.>
A informação também consta em artigo da revista Time, intitulado “Right-Wing Doctors Are Still Peddling Dubious COVID Drugs”, de maio de 2023. Segundo o texto, o médico Pierre Kory lançou um “centro de tratamento avançado da covid-19” com consultas a U$ 1.650 (cerca de R$ 8.250) para atendimento de ‘síndrome pós-vacinação’ ou outros problemas”. Ainda segundo a matéria, outro membro da FLCCC, o médico Fred Wagshul, vende consultas sobre ivermectina a U$ 211 (cerca de R$ 1.055).>
A postagem sobre o prêmio de Flávio Cadegiani diz que o médico foi “inocentado de crimes no Brasil”, mas necessita de contexto. Cadegiani é investigado por supostas irregularidades em estudo com o medicamento proxalutamida, administrado em pacientes com covid-19, no qual houve a morte de 200 pacientes no Amazonas. O médico foi inocentado em processos administrativos nos Conselhos Regionais de Medicina do Amazonas e do Rio Grande do Sul. Porém, dois processos contra ele ainda tramitam na Justiça Federal: um criminal, no Amazonas, e uma ação civil pública, no Rio Grande do Sul. >
Em setembro de 2021, no ofício enviado à Procuradoria-Geral da República (PGR) para que o órgão investigasse as mortes no estudo no Amazonas, a Conep relata uma série de irregularidades, como aplicação em locais diferentes e com número de participantes acima do autorizado, desrespeitando, segundo o órgão, o protocolo da pesquisa que havia sido aprovado.>
De acordo com a Conep, a autorização dada ao endocrinologista permitia que a pesquisa com proxalutamida fosse realizada com 294 voluntários, em Brasília. No entanto, Flavio Cadegiani começou a aplicar o medicamento em pacientes no Amazonas e em outros estados, como o Rio Grande do Sul. O órgão também alega que o parecer final entregue pelo médico continha resultados de 645 pessoas, mais do que o dobro do número autorizado.>
Procurada pelo Comprova, a PGR informou que o inquérito aberto pelo Ministério Público Federal (MPF) para apurar as mortes durante o estudo está em tramitação na Justiça Federal do Amazonas, sob sigilo. O órgão ainda informou que há outro inquérito que investiga Cadegiani em processo em andamento na Justiça Federal do Rio Grande do Sul. Neste último caso, o MPF moveu ação civil pública contra um conjunto de réus em razão de supostos fatos lesivos à saúde pública em estudo com proxalutamida para tratamento da covid-19 no Hospital Arcanjo São Miguel, em Gramado, no Rio Grande do Sul. A pedido do MPF, a Polícia Federal chegou a cumprir mandados de busca e apreensão contra o médico e outros envolvidos no estudo.>
O caso resultou em denúncia contra Cadegiani na CPI da Pandemia por crime contra a humanidade. Na época, a Rede Latino-americana e Caribenha de Bioética (Redbioética), da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco), disse que o caso “poderia ser um dos episódios mais graves e sérios de infração à ética de pesquisas e de violação aos direitos humanos dos participantes na história da América Latina”.>
Em relação às mortes, Cadegiani argumentou que a maioria havia sido registrada no grupo que tomou placebo. Segundo a Conep, diante do alto número de mortes era necessário interromper o cegamento do estudo – o medicamento fornecido aos participantes (proxalutamida ou placebo) era desconhecido do pesquisador – para verificar se os óbitos estariam associados à toxicidade do medicamento ou se o grupo de controle estaria em desvantagem por suposta eficácia da proxalutamida.>
A comissão ainda alegou que o pesquisador “nunca demonstrou a rastreabilidade dos medicamentos fornecidos na pesquisa (cadeia de distribuição e dispensação), sendo impossível certificar qual produto o grupo controle realmente recebeu”.>
Em entrevista ao portal Metrópoles, Flávio Cadegiani negou violações éticas e defendeu o estudo. Já em nota enviada ao Comprova, a assessoria do médico alegou que ele não fez publicações em que nega responder a processos na Justiça e ressaltou que Cadegiani foi inocentado pelos Conselhos de Medicina do Amazonas e do Rio Grande do Sul. “Ambos os conselhos concluíram pela total regularidade da conduta do pesquisador e que o estudo fora, sim, autorizado. Ainda constatou-se que a condução dos ensaios estava de acordo com os princípios éticos e com a legislação vigente no país”, destaca trecho da nota (Parágrafo acrescentado após a publicação de uma primeira versão deste texto).>
Flávio Cadegiani é médico formado pela Universidade de Brasília (UnB) com especialização em endocrinologia e metabolismo pela Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabolismo (Sbem). Com histórico de obesidade na infância, o médico se tornou conhecido no tratamento de pessoas com a doença, em Brasília. O especialista é autor do livro “Overtraining Syndrome in Athletes, A Comprehensive Review and Novel Perspectives”, publicado pela editora Nature. >
Em 2021, um estudo coordenado por Cadegiani ganhou projeção nacional após se tornar alvo da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep), do Conselho Nacional de Saúde (CNS), atrelado ao Ministério da Saúde. A comissão enviou, em setembro daquele ano, ofício à Procuradoria-Geral da República (PGR) para que o órgão investigasse a morte de 200 pessoas que participaram do estudo com proxalutamida no Amazonas.>
O endocrinologista foi convocado, ainda em 2021, a depor na Comissão Parlamentar de Inquérito da Pandemia, que o indiciou por crime contra a humanidade relativo ao estudo com proxalutamida. Assim como Cadegiani, a médica Mayra Pinheiro, autora da postagem analisada aqui, foi convocada no inquérito. Ela foi indiciada por epidemia com resultado morte, crime contra a humanidade e prevaricação. Na época, a médica ocupava a Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde, do Ministério da Saúde, durante o governo de Jair Bolsonaro. Mayra Pinheiro, que ficou conhecida como “Capitã Cloroquina”, chegou a disputar eleições em 2022 para deputada federal pelo Partido Liberal (PL), mas não se elegeu.>
Ambos os profissionais defendiam o chamado “kit-covid”. De acordo com o relatório da CPI, o conjunto de remédios sem eficácia comprovada, cujos mais conhecidos eram a cloroquina, a hidroxicloroquina, a ivermectina e a azitromicina, não é um “rol fechado”. “A depender de quem se expressa, podem ser incluídos a flutamida, proxalutamida, colchicina, spray nasal, bem como vitaminas diversas e suplementos alimentares”, destaca o texto. Segundo a Anvisa, além das vacinas, os medicamentos aprovados para tratar a covid-19 são: remdesivir, sotrovimabe, baricitinibe, paxlovid (nirmatrelvir + ritonavir), molnupiravir e tocilizumabe.>
Como o conteúdo pode ser interpretado fora do contexto original: Da forma como foi divulgada, a postagem dá a entender que Cadegiani recebeu prêmio de instituição americana independente e respeitada no meio científico, e que ele foi absolvido de investigações do MPF que tiveram repercussão na imprensa, umas delas criminal, por estudo com proxalutamida no tratamento a pacientes com covid-19. Essas interpretações, sugeridas pela postagem, não condizem com a realidade. >
O que diz o responsável pela publicação: O Comprova buscou a médica Mayra Pinheiro por meio de contato disponibilizado em sua rede social, por mensagens nas plataformas, e pelo PL do Ceará, mas sem sucesso. >
Alcance da publicação: O Comprova investiga os conteúdos suspeitos com maior alcance nas redes sociais. Publicado no Instagram, a postagem alcançou 24,3 mil visualizações até 26 de fevereiro.>
Como verificamos: O Comprova buscou informações sobre o prêmio dado a Cadegiani e constatou que ele foi concedido pela FLCCC Alliance. Em seguida, foram consultadas informações no site da organização e em veículos de imprensa sobre seus fundadores, além de pesquisas sobre o médico. Também foram consultados documentos oficiais da CPI da Pandemia. O Comprova ainda fez contato com a PGR para apurar sobre os inquéritos abertos pelo MPF contra Cadegiani, consultou um deles, que não está sob sigilo, no site da Justiça Federal do RS, e buscou informações sobre a responsável pela postagem analisada.>
Por que investigamos: O Comprova monitora conteúdos suspeitos publicados em redes sociais e aplicativos de mensagem sobre políticas públicas e eleições no âmbito federal e abre investigações para aquelas publicações que obtiveram maior alcance e engajamento. Você também pode sugerir verificações pelo WhatsApp +55 11 97045-4984.>
Outras checagens sobre o tema: O Comprova já publicou uma série de checagens que desmistificam o uso de medicamentos sem eficácia comprovada contra a covid-19. Entre eles, Flavio Cadegiani já apareceu em verificação de vídeo enganoso em que médicos associam o aumento de problemas cardíacos à vacinação e em estudo sobre ivermectina, que apresenta dados imprecisos e não comprova eficácia do antiparasitário contra covid.>