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Estadão
Publicado em 21 de novembro de 2024 às 14:44
A última Bienal do Livro de São Paulo bateu recordes de público e de venda de livros. Editores felizes, leitores satisfeitos, autores se sentindo celebridades. Mas a grande movimentação cultural, que reuniu mais de 700 mil pessoas no Distrito Anhembi, não passa de uma bolha, mesmo que uma grande bolha. >
Nesta terça-feira, 19, o Instituto Pró-Livro, o IPEC e o Itaú Cultural apresentaram os resultados da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil. Realizado a cada quatro anos, o estudo busca traçar um perfil do leitor brasileiro, acompanhando os níveis de leitura no País. Trata-se de uma pesquisa é estatística: para se chegar aos resultados, é definida uma amostra proporcional aos habitantes dos estados e regiões brasileiras. É identificado o perfil de cada entrevistado com base em fatores como faixa etária, escolaridade e renda e, a partir daí, a equipe faz uma estimativa populacional.>
Foram ouvidas 5.504 pessoas em 208 municípios. E o resultado apontado pela Retratos da Leitura 2024 é catastrófico em vários níveis. De 2019 para cá, por exemplo, o Brasil perdeu 6,7 milhões de leitores.>
A queda é generalizada, ocorreu em todas as classes, faixas etárias e níveis de escolaridade. Segundo o estudo, 53% da população não leu um livro ou parte de um livro nos últimos três meses, o que classificaria, segundo a pesquisa, a pessoa como leitora. Se considerar a leitura de um livro inteiro, o percentual de leitores cai para 27%. É a primeira vez, em seis edições, que o número de não leitores superou o de leitores.>
As quedas são significativas, inclusive, entre as pessoas em idade escolar. Na faixa etária dos 5 aos 10 anos, por exemplo, a redução é de nove pontos percentuais e dos 14 aos 17, a queda é de cinco pontos percentuais. Vale destacar que a pesquisa considera a leitura de livros didáticos como parte da investigação.>
O estudo ainda mostra que o brasileiro lê, em média, 3,96 livros por ano, índice menor do que o registrado em 2019, quando o brasileiro lia 4,95 livros por ano. O livro preferido dos entrevistados também chama a atenção. A Bíblia dominou todos os índices da pesquisa – figurando em perguntas como “Qual foi o livro mais marcante que você leu?” ou “Qual o livro ou o gênero que você mais gosta?”.>
A Bíblia aparece em primeiro lugar desde a primeira edição da Retratos da Leitura, em 2007. Os livros religiosos também são muito citados desde 2015. Na pesquisa divulgada neste ano, os evangélicos e os espíritas são os mais escolhidos, enquanto os católicos enfrentaram uma leve queda.>
E o efeito pandemia?>
Em 2020, o mercado livreiro nacional experimentou um fenômeno importante: o crescimento de 7,6% no número de exemplares vendidos. A pandemia podia ter reaproximado o brasileiro dos livros. Foi assim em outros mercados internacionais. Nos anos seguintes, novos registros positivos: crescimento de quase 5% em 2021 e de mais de 6% em 2022. A bonança acabou em 2023, quando o varejo de livros registrou queda de 13,41% no volume de livros vendidos.>
Isso, em certa medida, se vê representado no estudo de agora. Apesar dos números positivos nos anos seguintes à pandemia, o novo patamar de leitura não se concretizou e o brasileiro não só tem comprado menos livros, como lido menos também.>
Zoara Failla, coordenadora da Retratos da Leitura, diz que o incremento da venda de livros durante o período aconteceu, especialmente, para a população já leitora. A faixa etária de 5 a 10 anos, que enfrentou uma queda significativa nos índices, inclusive, teve mais dificuldade para acessar livros na pandemia.>
“Essa ‘garotada’ ficou sem sala de aula, sem biblioteca… E nós sabemos que é pequeno o percentual daqueles que conseguiram acompanhar as aulas online”, analisa Zoara. “Houve muita restrição em relação ao acesso ao livro.”>
Essa tendência também pode ser explicada pela concorrência pelo tempo de atenção do leitor. E a pesquisa investiga isso. 46% dos entrevistados declararam que não leram mais por falta de tempo.>
E o que as pessoas estão fazendo no seu tempo livre? A Retratos da Leitura mostra que 78% dos entrevistados gasta esse tempo na internet, seja acessando o WhatsApp ou Telegram (71%) ou navegando pelas redes sociais (49%). São significativos também os que assistem televisão (71%), escutam música ou rádio (60%) ou assistem a vídeos ou filmes em casa (53%).>
A coordenadora da pesquisa afirma que isso impacta, especialmente, os mais jovens. As crianças em idade escolar não têm a chance de desenvolver o gosto pela leitura, já que são estimuladas a ficar no celular. “Está crescendo o percentual nessa faixa etária daqueles que dizem que estão nos games, que estão assistindo a vídeos. Então, em vez de os pais estarem apresentando livro para entretenimento, fica mais fácil oferecer o celular com jogos e vídeos”, diz ela.>
Dificuldades para ler>
Quando perguntados se têm alguma dificuldade para ler, 18% respondeu que lê muito devagar, 14% não tem concentração suficiente para ler e 8% afirmou não compreender a maior parte do que lê. Ou seja, 36% dos respondentes têm alguma dificuldade de habilidade para leitura. O resultado pode estar com consonância com o Indicador de Anafalbetismo Funcional (Inaf). Conforme o último levantamento, de 2018, o País tem cerca de 30% de analfabetos funcionais, entre analfabetos plenos e em nível rudimentar.>
Zoara analisa que esses dados mostram que uma parte dos brasileiros enfrenta, inclusive, obstátulos para atividades básicas do dia-a-dia. “Nós verificamos até uma dificuldade dessas pessoas não conseguirem ler um contrato ou uma indicação médica, muitas vezes. Imagina ler um livro”, diz.>
O avanço das notícias falsas também está intimamente ligada a esse fator, segundo ela. “O grande problema, além de ele [o entrevistado] não entender o conteúdo daquilo que ele está lendo, é a capacidade crítica do que ele está lendo. Por isso, também, se fala tanto em fake news”, afirma.>
Estados mais leitores>
Santa Catarina lidera o ranking de leitores, com 64% da população declarando-se leitora. Paraná e Ceará aparecem na sequência, ambos com 54%. Vale destacar, ainda, Espírito Santo, com 53% de leitores, Goiás e DF, empatados, com 52%.>
Os estados com os menores índices são Rio Grande do Norte (33%), Mato Grosso (36%), Piauí (37%), Paraíba (38%), Alagoas (39%) e Sergipe, Amazonas e Mato Grosso do Sul (40%). O Nordeste detém os piores índices de leitura desde a primeira edição – apesar de, neste ano, o Ceará ter visto um aumento significativo de leitores.>
Zoara diz que os baixos índices de leitura na região estão ligados aos fatores renda e letramento. “É no Nordeste que encontramos as piores avaliações de Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB), com exceção do Ceará e Pernambuco, que estão, felizmente, conseguindo reverter tudo isso e ter uma avaliação melhor”, comenta.>
Os altos índices dos estados do Sul, porém, não significam que grande parte da população lê livros de literatura. Conforme a coordenadora da pesquisa, o percentual são de pessoas mais velhas e que, em sua maioria, são leitores da Bíblia. “Precisamos tomar um pouco de cuidado com os percentuais mais altos. É importante saber qual é o perfil do leitor naquela região, naquele estado”, diz.>
Você gosta de ler?>
A Retratos da Leitura investiga também o gosto pela leitura. A edição de 2024 mostrou que aumentou o número daqueles que declararam não gostar de ler. Em 2019, era 22% e agora subiu para 29%.>
A pesquisa pergunta ainda “Qual é a principal razão para ler?”. Do total de leitores, 24% diz que lê por gosto. No entanto, esse gosto pela leitura diminui com a idade. Entre as crianças de 5 a 10 anos, 38% diz que lê porque gosta. Durante a adolescência e até os 24 anos, esse índice varia de 31% a 34%. Nas faixas etárias seguintes, o estudo mostra redução na menção a essa motivação: 21% entre 25 e 29 anos, 19% para quem está na faixa dos 30, e segue estável em 17% para todas as faixas etárias acima de 40 anos.>
A coordenadora da pesquisa diz que a pergunta sobre “Como manter esse gosto pela leitura ao longo dos anos?” é essencial. Se somados o percentual das pessoas de 5 a 10 anos que afirmam que “gostam muito” ou “gostam um pouco” de ler, a taxa ultrapassa 80%.>
A pouca valorização do livro, seja no ambiente escolar ou no familiar, pode explicar a queda com o avanço da idade. Segundo ela, há muito mais leitores entre aqueles que foram e são estimulados pela família a ler.>
Leitura em sala de aula>
Outra pergunta feita pela Retratos da Leitura é onde os leitores costumam ler. O que chama a atenção é a redução do número de pessoas que apontam a sala de aula como lugar de leitura. Em 2007, 35% citou esse espaço escolar. Em 2011, foi 33%. Na edição seguinte, de 2015, as menções correspondiam a 25% da população. Em 2019, foram 23%. E agora foi de 19%, o menor índice já registrado.>
A escola é o principal espaço para desenvolver o gosto pela leitura e, segundo Zoara, 60% das escolas de ensino básico no Brasil não tem uma biblioteca. O baixo percentual de professores que se declaram leitores também preocupa. A coordenadora aponta que “o repertório de leitura dos professores é muito parecido com o repertório de leitura dos brasileiros em geral”. E o hábito de leitura ainda é dificultado pela dupla jornada da profissão.>
Dentre as pessoas que declararam se dedicarem ao ofício, uma parte significativa disse preferir a Bíblia, autoajuda ou livros religiosos. “Com esse repertório, fica muito difícil de o professor desenvolver uma atividade que seja envolvente e estimulante. […] Ele vai ter dificuldade de indicar livros interessantes e significativos para aquelas faixas etárias ou para a localização onde aqueles estudantes moram”, diz a coordenadora da pesquisa.>
E o futuro?>
A influência da internet e das redes sociais é um fenômeno novo mostrado na atual edição da Retratos da Leitura. Zoara afirma ser difícil mudar esse cenário, mas, talvez, a chave esteja no gosto cada vez maior pelo compartilhamento. “As pessoas, o tempo todo, estão compartilhando suas ideias, suas viagens, suas fotos. Eu acredito que aí está o segredo: compartilhar. Um bom mediador e um bom professor têm que saber usar essas novas ferramentas”, diz.>
As bibliotecas, inclusive, também precisam ser lugares de troca de ideias e livros. “Não adianta você ter uma ‘biblioteca do silêncio’. Aquela biblioteca que só empresta livros”, diz ela. “A biblioteca tem que ser, mais do que nunca, o espaço do barulho, das trocas, do compartilhamento. […] Tem que ser um polo dinamizador de cultura, de encontros da comunidade e de construção de conhecimento.”>
A coordenadora da pesquisa cita como exemplo os projetos de bibliotecas comunitárias. Durante a abertura da Bienal do Livro de São Paulo, o governo anunciou que pretende implantar o projeto no Minha Casa, Minha Vida em municípios onde não há bibliotecas em funcionamento – Zoara diz que as propostas precisam ser efetivas e implantadas em um prazo curto.>
Ela aponta que ainda faltam campanhas para a “revalorização do livro”. Segundo a coordenadora, é preciso “valorizar o que o livro oferece e que os outros suportes, como o Google, não conseguem oferecer”. Nas famílias, os livros também podem se transformar em brinquedo para as crianças, em presente como forma de demonstrar carinho ou até em memórias afetivas.>
Os principais pontos da pesquisa Retratos da Leitura 2024>