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Estadão
Publicado em 6 de novembro de 2024 às 14:22
Depois de quase um ano de polêmicas, o Conselho Nacional de Educação (CNE) aprovou na terça-feira, 5, uma nova versão do chamado parecer 50, sobre educação de alunos com Transtorno do Espectro Autista (TEA). O texto antigo, que tinha sido aprovado no fim de 2023, não foi homologado pelo ministro Camilo Santana e levou a fortes movimentos - contrários e a favor - de famílias e especialistas no tema. >
Em acordo costurado com o Ministério da Educação (MEC), o texto foi reduzido de 69 para 22 páginas e redigido novamente para retirada de trechos que "criavam tensão", como disse o conselheiro Paulo Fossatti, presidente da comissão que elaborou o novo parecer, durante a sessão no CNE.>
Uma dessas questões era a recomendação de um acompanhante especializado para alunos autistas, que os ajudaria inclusive em atividades pedagógicas. O texto aprovado cita agora apenas os chamados profissionais de apoio, já previstos em lei e que devem ser contratados pelas escolas, com funções de auxílio a locomoção, higiene, comunicação, interação social, mas sem "desenvolver atividades educacionais diferenciadas".>
Por outro lado, permaneceu no texto outra questão que causava divergência: a exigência dos alunos com TEA de terem um Plano de Educação Individualizado (PEI). O parecer sugere uma lista de perguntas que as escolas devem fazer em um "estudo de caso" analisando, por exemplo, se o aluno gosta de estudar, sua interação na escola, seu desenvolvimento afetivo e a opinião da família. E fala da criação de um plano com "medidas individualizadas de acesso ao currículo para estudantes autistas".>
O parecer deixa claro que o estudo de caso ou o auxílio do profissional de apoio não deve estar condicionado à existência de laudo médico do aluno. E ainda ressalta que é crime não apenas a negativa de matrícula de estudantes com TEA, mas também a cobrança de valores adicionais e "a procrastinação no processo, manifestada muitas vezes por meio de exigências como entrevistas, testes, avaliações e documentos extras". O parecer ainda precisa ser homologado pelo ministro.>
Há 634.875 alunos diagnosticados com TEA nas escolas públicas e particulares brasileiras, alta de mais de 1,4 mil% nos últimos dez anos, segundo o MEC. Crianças no espectro autista têm alterações de neurodesenvolvimento que afetam, em geral, a comunicação, a linguagem, a interação social, comportamentos e a aprendizagem.>
Hoje usa-se o termo espectro porque há diferentes graus de autismo, com características que podem estar presentes ou não em cada um, com maior ou menor necessidade de apoio.>
Apesar de esses alunos estarem matriculados em escolas regulares - e não em instituições especializadas em cada deficiência, como no passado, antes da difusão do conceito da inclusão - é consenso que essa educação inclusiva não se efetivou como deveria.>
Quais eram as polêmicas em relação ao parecer 50?>
O grande nó da discussão era que o Parecer 50/2023 previa diretrizes para inclusão de autistas com base em pesquisas ligadas à análise do comportamento, área da Psicologia menos difundida no Brasil, mas prevalente em países como os Estados Unidos.>
Como o próprio nome indica, é uma ciência focada no desenvolvimento por meio de mudanças no comportamento. O texto listava, por exemplo, práticas que deveriam fazer parte do ambiente escolar, da formação de professores e de acompanhantes dos alunos com TEA. Essa lista foi retirada da nova versão.>
Ela citava procedimentos usados por terapeutas como o "reforçamento", que é a "aplicação de uma consequência", como um comentário elogioso, "após uma resposta dada pelo aluno que aumenta a probabilidade de ele emitir a resposta no futuro em situações semelhantes".>
Críticos do texto viam tentativa de impor abordagem médica na educação, que vai contra a função e a autonomia da escola. E ainda dizem que as recomendações atenderiam a interesses do mercado.>
Quem defende as práticas comportamentais argumenta que elas são as únicas com evidências científicas para o TEA e que outras correntes da Psicologia sequer passaram por testes clínicos randomizados.>
Em abril, um movimento intitulado #homologacamilo cresceu nas redes sociais, pressionando o MEC a ratificar o documento anterior. O mesmo grupo entregou ao ministro documento com cerca de 2,6 mil assinaturas de entidades de apoio ao texto.>
Por outro lado, Camilo sofreu pressões e cartas de repúdio também de entidades e especialistas, pedindo que não homologasse o parecer. Muitos vieram de movimentos sociais, alinhados à esquerda.>
Por causa disso, a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização de Jovens e Adultos, Diversidade e Inclusão (Secadi), do MEC, passou a debater o tema e fazer articulações com especialistas dos dois lados para se chegar a um texto comum que pudesse ser votado novamente no CNE.>
Nesse interim, a ativista de inclusão e jornalista Mariana Rosa, que se posicionava fortemente nas redes sociais contra o parecer, foi indicada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para uma das 13 novas vagas do CNE.>
Na sessão desta terça, ela foi a única a votar contra o parecer. Embora reconheça que houve "diálogo importante", ela "rejeita que se use uma categoria diagnóstica para estabelecimento de um parecer".>
Acompanhante especializado: o que muda?>
O Brasil tem um arcabouço de leis e regulamentações sobre a inclusão, a mais relevante delas é a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva, de 2008, que prevê acesso em escolas regulares de crianças com deficiências, o que inclui o autismo. Mas as leis nem sempre são claras quanto às exigências e usam termos diferentes para atribuir funções e direitos.>
O acompanhante especializado está previsto em lei de 2012, como direito da pessoa com TEA em "casos de comprovada necessidade", mas sem especificar suas funções. Já o profissional de apoio está na Lei Brasileira da Inclusão como alguém que "exerce atividades de alimentação, higiene e locomoção do estudante com deficiência e atua em todas as atividades escolares nas quais se fizer necessária".>
No jargão de famílias e terapeutas da área, esses profissionais muitas vezes são chamados de acompanhantes terapêuticos ou ATs, nomenclatura que não aparece na legislação sobre inclusão, e têm a função de ajudar os alunos em qualquer atividade, desde a locomoção até as pedagógicas.>
Um decreto de São Paulo, editado pela gestão Tarcísio de Freitas (Republicanos), tornou ainda mais complexa a discussão quando autorizou em abril que famílias providenciem seus próprios acompanhantes para filhos com deficiências ou até mesmo que entrassem nas escolas para dar apoio. Como o parecer tem caráter orientativo, o Estado não precisa necessariamente mudar a medida>
Quem discorda da medida diz que ela tira a responsabilidade do Estado de prover esses profissionais. Outros argumentam que é a única forma, por ora, de ajudar famílias desesperadas para que os filhos sejam incluídos na escola porque não teriam condições de ficar nas salas de aula sem o acompanhante.>
A versão anterior do parecer previa que alunos com TEA tivessem o acompanhante especializado que, além de ajudar em questões de locomoção ou higiene, auxiliasse em atividades pedagógicas, já que o profissional de apoio não teria essa função.>
Secretários de Educação discordavam da exigência porque poderia levar ao entendimento de a escola deveria contratar um acompanhante para cada aluno autista, o que seria inviável do ponto de vista orçamentário, segundo eles.>
Mas o texto aprovado retirou esse item e manteve apenas o profissional de apoio. Segundo o MEC, no entanto, o escopo desse profissional ainda é discutido. O ministério pretende apoiar institutos federais e universidades para formar esses profissionais, além de regulamentar a função.>
O governo não tem sequer dados sobre quantos são no Brasil e qual a formação dos profissionais de apoio.>
Como ficou o PEI?>
Um "plano de atendimento educacional especializado" também é previsto em lei, mas sem detalhes de como e por quem ele deveria ser elaborado. Muitas escolas têm o Plano de Atendimento Educacional Especializado (PAEE), que costuma ficar mais restrito às atividades feitas em salas de apoio para estudantes com deficiência.>
O texto antigo do parecer 50 previa que o chamado Plano de Educação Individualizado (PEI) fosse uma versão ampliada, implementado em "todo o espaço escolar, podendo auxiliar atividades em casa para responsáveis/cuidadores". Dizia ainda que ele deve ainda ser elaborado em, no máximo, 60 dias após o começo das aulas.>
Outra parte polêmica afirmava que o PEI deveria ser elaborando conjuntamente por professores e outros profissionais que atendem o aluno, família e estudante com autismo. Essa possibilidade de participação da família era motivo de preocupação entre secretários, que viam risco de interferência de pais e mães em questões pedagógicas.>
Outras correntes críticas à adoção do PEI entendem que ele individualiza muito o atendimento e que vai contra um modelo social de inclusão, não focado nas especificidades de cada deficiência e que entende que a escola precisa se adaptar ao estudante e não o contrário.>
O PEI foi mantido na nova versão do texto, mas com menos ênfase e menos detalhes. Há a descrição de como deve ser o "estudo de caso" do aluno autista e a menção tanto ao PAEE quanto ao PEI.>
No estudo de caso, que descreve o contexto educacional do aluno, suas habilidades, preferências, desejos, o parecer diz que as escolas devem fazer "entrevistas, diálogos com a família" e também ouvir "profissionais de outros serviços setoriais, como assistência social e saúde, de forma complementar, quando considerado necessário pela equipe pedagógica".>
"A vitória do parecer é a vitória da democracia, da busca do consenso, da ciência e do engajamento de toda uma sociedade que por mais de 330 dias se manteve mobilizada para que esse parecer fosse aprovado", disse a advogada Flavia Marçal, que fez parte do primeiro grupo de especialistas que escreveu a versão antiga do texto.>
Mesmo com diversas mudanças no documento, ela acredita que já é positivo ter um parecer específico sobre TEA. "É também uma vitória das milhares de famílias de pessoas com autismo e de pessoas com autismo por todo o Brasil.">
Como está a inclusão no País>
Têm sido frequentes reclamações de docentes que dizem não saber lidar com autistas na sala de aula, em momentos em que eles se desregulam e entram em crises ou quando têm dificuldades de aprendizagem. Por outro lado, famílias denunciam desde a recusa da matrícula, como o despreparo e o descaso dos profissionais das escolas com as crianças com TEA.>
"A inclusão está acontecendo no País, os alunos estão em sala de aula, todos estudam com pessoas diferentes. Mas é a escola inclusiva que desejamos? Não há a menor dúvida de que a gente precisa melhorar", disse ao Estadão, durante a discussão do parecer, a secretária de Diversidade e Inclusão (Secadi), Zara Figueiredo, do MEC.>
Segundo o CDC americano (Centro de Controle e Prevenção de Doenças, na sigla em inglês), uma em cada 36 crianças no mundo tem TEA, um aumento exponencial.>
Enquanto isso, o Brasil não formou professores e outros profissionais em grande escala. E ainda viu crescer o número de docentes formados de forma precária; 60% estão em cursos a distância.>
O sistema público - onde está a maioria das crianças autistas - enfrenta o desafio de melhorar a aprendizagem de todas as crianças, com professores que trabalham em vários turnos, em salas superlotadas, carreiras desvalorizadas, estrutura insuficiente e conflitos crescentes.>