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Alexandre Lyrio
Publicado em 29 de setembro de 2019 às 06:05
- Atualizado há 2 anos
O refeitório da antiga Cobrac era uma linha de produção à parte, uma fábrica de provocar mal estar nos empregados. Hoje, alguns dos 2 mil sequelados que sobreviveram para contar essa história dizem que o simples ato de se alimentar na empresa que explorou chumbo em Santo Amaro por 40 anos era visto com desconfiança pelos funcionários. Moacyr Boa Morte perdeu boa parte dos dentes (Foto: Yuri Rossat/CORREIO) “A gente comia e já estava passando mal. Qualquer alimento ingerido lá pesava. Era comer lá dentro e gente colocava tudo pra fora. Tanto que depois tiraram a comida e nos deram tíquete-refeição”, disse Moacyr Boa Morte Martins, 60 anos, que hoje sofre com perda dos dentes, dores nos ossos e manchas na perna. O pai de Moacyr estaria entre as 1 mil vítimas fatais das sequelas causadas por chumbo na cidade. “Meu pai trabalhou lá também”, conta.
O mal estar pós refeitório era atribuído à comida. E, de fato, os alimentos produzidos na empresa poderiam conter vestígios do metal pesado. Mas, nessa época, boa parte dos funcionários já estava contaminada. Professor da Faculdade de Medicina da Ufba, Fernando Carvalho diz que estudos mostraram que o nível de chumbo no sangue de 82% dos trabalhadores estava acima de 70 mg/l. Médico Fernando Carvalho (Foto: Yuri Rossat/CORREIO) “Em mais de 70% havia sinais de intoxicação grave, além da presença de verme”. Os antigos funcionários, hoje quase todos com sequelas, confirmam que a empresa tentava esconder ou amenizar os problemas de saúde. “Quando um trabalhador passava mal, eles mandavam para a enfermaria e o médico aplicava uma injeção vermelha que doía muito. Isso amenizava, mas depois a dor voltava.
As coisas corriam na surdina, os trabalhadores ficavam numa situação crítica”, lembra Moacyr, que hoje trabalha como motorista. “Eu dirijo ônibus escolar porque preciso trabalhar. Não consegui me aposentar e enfrento a dor nas pernas”.
Fumaça Do refeitório à casa do forno - onde eram produzidos os lingotes de chumbo - os relatos hoje remontam condições precárias de trabalho na Cobrac, atual Plumbum. Quem trabalhava na casa do forno, por exemplo, alimentava o fogo com minério e respirava toda a fumaça da escória a uma temperatura de 95 graus.“Era impossível usar qualquer coisa no rosto para se proteger porque era muito quente. Eles davam uma máscara fina, mas a gente não aguentava usar”, relata Moacyr, um dos que não teve dinheiro para ir em Salvador medir o nível de chumbo no sangue, realizado no Centro Estadual de Referência em Saúde do Trabalhador (Cesat). Antiga Cobrac localizava-se bem próximo ao Centro de Santo Amaro (Foto: Reprodução Google Earth) Em 1990, acreditava-se que o limite seguro para níveis de chumbo era de 10 mg/l de sangue. Mas, a partir de então, estudos começaram a revelar que abaixo disso já surgiam as primeiras sequelas. “Com menos de 10 mg/l já tem diminuição de QI, déficit de audição e queda no nível de crescimento”, lista Fernando Carvalho.
A partir de 20 mg/l a coisa começa a ficar mais grave. “Há a diminuição da comunicação nervosa, o metabolismo da vitamina D leva à anemia grave, cólicas e encefalopatia”. Imagine para os funcionários e os moradores do entorno da empresa, cujos níveis de chumbo chegavam a 90 mg/l. Hoje, a Organização Mundial da Saúde (OMS) aponta que o nível seguro para chumbo no sangue é zero.
O chumbo ataca quase todos os órgãos do corpo. Outro estudo mostrou que 32% dos trabalhadores da Cobrac tinham lesão renal. A pesquisa, diz o médico da Ufba, fez um comparativo com a fábrica de papel na mesma região, onde 2,3% dos funcionários apresentavam o mesmo problema. O próprio Fernando Carvalho fez um levantamento sobre doenças cardíacas graves em Santo Amaro. ”No município se tem má-formação cardíaca grave em que o chumbo está envolvido”.
Tanto o médico da Ufba quanto os ex-funcionários afirmam que o serviço médico da empresa não costumava emitir o CAT (Comunicação de Acidente de Trabalho) quando algum trabalhador ficava doente. O CAT deve ser emitido tanto em caso de acidente quanto em doenças ocupacionais. Uma rede de subnotificação teria sido criada, diz o médico da Ufba.
“O empregado ia para a Santa Casa de Misericórdia, que também não emitia a notificação. Com a piora do quadro, ele era encaminhado ao Hospital São Rafael, onde o mesmo médico que atendia à fábrica trabalhava. Ou seja, era uma rede formada para subnotificar. Essa linha cria uma invisibilidade, porque a CAT não chegava às instituições de controle”, explicou Fernando Carvalho. “A notificação era muito precária porque não se tem como especificar quais são as doenças decorrentes da contaminação por metais pesados. São muitas”, explica Fernando.
Os ex-funcionários que hoje enfrentam sequelas apontam o médico Ademário Spínola como o responsável pelo serviço médico da empresa na época. Hoje, ele atua no Instituto de Saúde Coletiva (ISC) da Ufba. Por telefone, Ademário Spínola disse ao CORREIO que está "completamente afastado disso" e que "não gostaria de dar qualquer declaração". Spínola chegou a dizer também que não era médico da fábrica, mas, ao mesmo tempo admitiu que supervisionava os profissionais.
Mais relatos Cosme dos Santos, ex-funcionário, 62 anos - "Eu trabalhava numa das partes que queimava o material pra pesar e descer pra fazer o chumbo. Lá tinha muito pó. Na época, não tinha equipamento de segurança, máscara, luvas, até o macacão a gente trazia pra lavar em casa. Com o tempo comecei a passar muito mal, muita náusea. Pedi pra sair. Os problemas continuaram. Muita tontura! Desenvolvi problemas no coração e acabei precisando colocar um marcapasso".
Reginaldo Pereira, ex-funcionário, 53 anos -"Eu trabalhei na boca do forno fazendo placa de chumbo. Sentia muita falta de ar e falta de apetite. Fui perdendo as forças ainda dentro da fábrica. Já passei por duas pneumonias e hoje tenho problema na uretra. Todos os exames indicaram chumbo em meu sangue. Um dos meus pulmões funciona muito mal e os médicos disseram que foi o chumbo. Vivo da ajuda de parentes. Sinto muita dor quando respiro. Minha vida acabou".
José Carlos da Silva, ex-funcionário, 63 anos - "Fraqueza Os sintomas são dores nos braços e pernas e muita fraqueza. Não tenho dinheiro e sou ajudado por minha prima Hilda. A aposentadoria nunca consegui porque não fiz exame para comprovar doença. Quando eu posso, saio para vender picolé e ajudar nas contas, mas é raro. O comum mesmo é eu ficar em casa com dores. Hilda me alimenta, me veste, compra vitamina para os ossos. Faz o que pode para me manter vivo".
Antônio Gonçalves, ex-funcionário, 74 anos - "Comecei a trabalhar na empresa em 1971. Quando faltava água, nem dava pra tomar banho. Voltava pra casa todo sujo, com escória pelo corpo. O trabalho era 30 dias direto, sem folga. Almoçava junto das máquinas, do forno, da escória. Quando a fábrica fechou não me ofereceram nada. Os exames deram altas taxas de chumbo e cádmio. Hoje eu caminho mesmo com dores. Os que pararam a morte levou".
No próximo domingo (6), o CORREIO publicará a última reportagem da série sobre a contaminação por chumbo e outros metais pesados em Santo Amaro da Purificação, no Recôncavo Baiano.