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O renegado: desabamento de Hotel Colombo expõe jogo de empurra e descaso

Antes disputado, imóvel tombado está no meio de imbróglio entre proprietário, prefeitura de Cachoeira e Iphan

  • Foto do(a) author(a) Fernanda Santana
  • Fernanda Santana

Publicado em 24 de fevereiro de 2019 às 05:10

 - Atualizado há 2 anos

Como qualquer boa história, a do Hotel Colombo é escrita com a tinta do improvável. Um espanhol de Pontevedra chega a Cachoeira, no Recôncavo baiano, nos anos 30. O mesmo estrangeiro abre um hotel. O negócio, à margem do Rio Paraguaçu, prospera. É como um filho para Aurélio. Mas, em 1972, o filho perde o pai. E o hotel, sem a força de sua sustentação, definha até cair, agora, no Verão de 2019, no dia 19 de janeiro. Então, começa a briga para decidir quem responde pelo antigo filho pródigo. Como qualquer boa história, a do Colombo aguarda um final feliz. 

As 165 páginas de um processo revelam o que Aurélio Bouzas jamais esperou para o futuro da sua grande conquista em solo brasileiro, seu refúgio contra a Guerra Civil Espanhola. O espanhol também abriu uma sede do hotel em Nazaré das Farinhas, onde hoje funciona uma loja, num sobrado amarelo restaurado. O Colombo é apenas uma das 670 edificações tombadas como um só organismo urbano na cidade. E apenas um dos que sofrem com o abandono e a falta de restauração na cidade. 

A disputa impressa nas laudas é iniciada em 2014, quando a Prefeitura de Cachoeira desapropria o agora proprietário, Raimundo Coelho, para uso público do sobrado. “Se ele não estivesse morto, morreria ao ver o que aconteceu”, diz Raimunda Bouzas, viúva do mais famoso dos seis filhos de Aurélio, Heraldo Bouzas, um dos fundadores da banda Os Tincoãs.  

A intenção era usar o prédio de 1,4 mil metros para instalação do curso de Arquitetura da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). No dia 30 de maio de 2014, o prédio vira propriedade pública. O valor da reforma, no entanto, seria maior do que o esperado.

Na verdade, segundo o reitor Silvio Soglia, por meio de assessoria, a proposta do campus ficou restrita à especulação. Depois de pagar R$ 58 mil, a Prefeitura desiste da ação, em novembro de 2016. E, em maio do ano passado, a tutela legal do sobrado volta para Raimundo, conhecido como Raimundinho. 

O advogado por formação e ex-funcionário público é nascido e criado em Cachoeira. Na boca dos conterrâneos, é um homem tranquilo, mas determinado. Desde os anos 90, coleciona compra de casarões. O Colombo entra para o topo de suas preciosas aquisições em 1992, quando consegue comprá-lo da mão de Manoel Carlito. Na mira, não estava o hotel, mas a possibilidade de especulação imobiliária.

Conta-se, meio de brincadeira, meio de verdade, que Raimundo faz parte de um problema social de Cachoeira. O problema de herança.“Os imóveis que estão caindo são pertencentes a herdeiros. Nenhum herdeiro quer preservar, quer ganhar uma fatia do que esses imóveis valem”, opina um amigo da família Coelho, sob anonimato. 

O Colombo ficou entregue à própria sorte. Com Aurélio, conhecera a glória. Com Manoel Carlito, o Carlito Muquibão, o início da decadência. Já faltavam reformas ao casarão, construído no início do século 19 e com dois andares anexados nas décadas de 50 e 60. A enchente do Rio Paraguaçu, em 1989, somou à decisão de Muquibão.

Na mesma rua de onde se avista a estrutura caída, Damião Coqueiro, 58, relembra:“Carlito já tava doido para vender. Me fez a proposta também. Ele queria vender por R$ 105 mil na época. Não tive como”.Seu Damião fez de tudo em quase 15 anos de Colombo: trabalhou no restaurante, morou com a família e abriu um bar nas dependências do fundo. “Hoje, evito até passar ali pela frente, minha filha...Dói”, conta. Ninguém da família foi encontrado para comentar os anos de Muquibão à frente do Colombo.

Com Raimundinho, as portas do Colombo são definitivamente fechadas até caírem. Nas mãos da Prefeitura, igual ocorre. Todos queriam o Colombo. Ninguém o quer mais. 

Na semana seguinte à queda, deu-se a busca por Raimundinho, também dono da Pousada Pai Thomaz, a poucos metros do destroçado Colombo, na Praça 25 de Março. “Procuraram logo... ninguém achou”, conta Valdir Soledade, morador de Cachoeira.

A notificação do Instituto do Patrimônio História e Artístico (Iphan) – o sobrado do Colombo faz parte do conjunto tombado na cidade, desde 1943 – e da Prefeitura Municipal chegou ao apartamento de Raimundinho no Campo Grande, em Salvador, na semana seguinte. A reportagem encontrou o empresário, que preferiu não comentar o assunto, depois de ter reafirmado não ser mais o proprietário legal do imóvel. E quem é?

No curso do processo, Raimundinho estava inconformado com o valor pago pelo sobrado, avaliado depois pela Justiça em R$ 393 mil.“Legalmente, a Prefeitura ficou responsável pelo imóvel por quatro anos, e nada fez. Se caiu, também tem sua parcela de culpa”, comentou um advogado especializado no trâmite.Depois da decisão, Raimundinho pediu recurso.

A defesa alega que o pedido de revisão de valores, por exemplo, não foi levado em consideração. É que o empresário havia solicitado, ainda em 2016, R$ 695 mil referente a aluguel do sobrado, juros e a impossibilidade de utilização do imóvel.

A advogada responsável foi procurada, mas não atendeu aos telefonemas.  Assessor jurídico de Cachoeira, Igo Vinicius responde: “A revogação e a desistência não dependem da vontade do proprietário. É o entendimento do município”.

No entendimento da lei, há brechas. “O valor foi depositado, embora depois o réu [Raimundo] tenha pedido mais. Talvez a defesa tenha encontrado um caminho”, comenta o outro advogado. A Prefeitura enviará uma representação ao Ministério Público do Estado da Bahia (MP-BA). Já o Iphan notificará o proprietário e o município “reiterando o pedido de adoção das medidas emergenciais”. O outro auto de infração foi enviado a Raimundo, no dia 21 de janeiro. Segundo o Iphan, ele tem 15 dias para se manifestar. 

Mas com o Colombo, mesmo mais de um mês depois de sua destruição parcial, nada foi feito. Isolado apenas por bandeirolas azuis, o Hotel tem a história com personagens como Gilberto Gil e Cauby Peixoto, e os próprios Tincoãs, abafada pelo peso das pedras.

De Gil aos Tincoãs: Colombo é celeiro de histórias

Gilberto Gil, ainda muito menino, costumava acompanhar o pai médico, José Gil Moreira, em viagens ao interior. Nesse período, que durou até 1967, a linha flúvio-marítima pelo Rio Paraguaçu era a principal ligação de Salvador com o sertão. Quando não havia embarcação de volta à capital, dormiam, pai e filho, no Hotel Colombo.

Dos jantares ali, o bife acebolado do restaurante tornou-se o favorito do músico. “Quando ele ainda era ministro [2003-2008], esteve aqui e contou isso. Estava triste ao ver o hotel do jeito que estava”, recorda Fábio Coqueiro, 35, filho de Damião, vereador e ex-secretário de Meio Ambiente e Obras Públicos.  

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A história do Colombo é a de um hotel frequentado, obviamente, por viajantes de todos os cantos. Mas também por maridos e esposas em encontros furtivos, das prostitutas à beira do cais. “Ali, o Colombo de frente para o Rio Paraguaçu... Era aquela Bahia contada por Jorge Amado”, romantiza o historiador Cacau Nascimento, conhecedor dos causos cachoeiranos. É, ainda, a história com artistas como Ângela Maria e Cauby.

Sobre Cauby, um fato ocorrido na década de 50 permanece na memória dos mais velhos moradores da terra. O cantor tentava sair do hotel rumo ao Cine Teatro Cachoeirano, onde faria um show. Os fãs  impediam, reclamavam autógrafos e abraços. A única solução é sair, guiado pela multidão, cantando a seresta Conceição. “E aí grito, desmaio. Era Cauby Peixoto! O Hotel tem essa mística na cidade”, recorda Cacau.

Nas dependências do hotel, com 47 quartos, aconteceram os primeiros ensaios d’Os Tincoãs, criado em 1962 por Heraldo, primogênito de Aurélio e Cleonice, Matheus Aleluia e Dadinho. “Era um ponto de passagem obrigatória, mesmo para quem morava lá”, lembra Matheus, em breve conversa por telefone. Na lembrança de Raimunda, Heraldo, saído do grupo em 1975, por desentendimentos, não queria que o hotel fosse vendido. “Rai ai, vender o hotel... não pode”, costumava reclamar o músico, que faleceu dois anos depois, vítima de um infarto.

Mas o hotel é vendido, os quartos são progressivamente fechados e, em 1992, abaixa as portas de vez. Pelo menos até a manhã do dia 19 de janeiro, o sobrado era apenas uma lembrança remota do passado. Naquele dia, o capítulo do esquecimento teve seu desfecho na queda da parte do fundo da estrutura. "Cachoeira já não tinha aquele poder de antes. O trem não levava mais para Salvador [desde 1967], tinha ocorrido uma enchente no rio. Também não houve fomento turístico...", comenta Cacau.

No dia 17 de janeiro, uma zoada vinda do Colombo já tinha sido ouvida. Não houve nenhuma fiscalização do Iphan para averiguar a situação, conforme apurou a reportagem, diferentemente do divulgado pelo órgão. Na verdade, apenas aconteceu uma visita à área externa, insuficiente para comprovar qualquer dano. Antônio Jorge Oliveira, 48, um dos primeiros a chegar ao local, recorda:“Já era coisa que tava caindo... Um bocado de pedra. Foi sorte que não tinha ninguém dentro, nem na calçada”.

A causa da queda é associada, segundo relatório do Iphan a que a reportagem teve acesso, a falta de manutenção. No dia 24 de janeiro, mostra o mesmo documento, o engenheiro recomendou a interdição na área, seguida de demolição de um pedaço da laje. O risco de uma nova queda, caso contrário, é iminente, acrescenta. A reportagem foi ao casarão onde funciona um escritório técnico do Iphan em busca de respostas. Saiu de lá sem nenhuma.

A questão é justamente saber quem responderá pelo que, há anos, era esperado pelos cachoeiranos: a queda do Colombo. A Prefeitura, por exemplo, não auxiliou no isolamento do perímetro. “A responsabilidade é de Rele [Raimundinho]. Os escombros não podem ser retirados porque corre risco de deslizar tudo”, defende-se o secretário de Meio Ambiente e Obras Públicas do município, Edgar Moura. 

Abandono de casarões é realidade em Cachoeira

Ao lado do que restou do Colombo, estão três outros sobrados. Num deles, sob o teto vacilante, funciona uma oficina. Fazem parte, como toda a Rua Sete de Setembro onde estão localizados, do conjunto tombado pelo Iphan desde 1971. É considerado um parque barroco ao ar livre. Segundo a Secretaria de Meio Ambiente e Obras Públicas, estão “condenados” pela Prefeitura junto a outro imóvel na Rua JJ Seabra. No Iphan, não há registros de condenação de nenhum imóvel. 

Nas ruas da cidade onde nasceram Teixeira de Freitas, Ernesto Simões Filhos e Ana Nery, também é visível a falta de preservação do patrimônio. O casal Raimundo e Letícia, moradores de um casarão na Rua 13 de Maio, convive com medo de o sobrado vizinho desmoronar.

Em 2015, uma parte da estrutura desabou e a mãe de Raimundo, Edna, sofreu um Acidente Vascular Cerebral (AVC), tamanho o trauma. O acidente lhe custou a vida.“Escoramos por dentro com medo do que poderia acontecer depois. Colocamos até para vender [o imóvel custa R$ 405 mil]. Qualquer barulho de noite, a gente acha que vai cair tudo aqui”, relata Raimundo Sodré, 40, mecânico.

O Iphan esclarece, em nota: “O tombamento [...] não tira de seu proprietário, seja ele público ou privado, a responsabilidade pela manutenção, gestão e conservação do mesmo”, ressalta o órgão, em nota.

No casarão azul à frente de onde Raimundo mora desde a infância, outra lembrança trágica: um incêndio, em 2016, matou duas crianças de 3 e 4 anos. Quase ao lado, um casarão torto é o novo motivo da preocupação.“Todo mundo acha que será a próxima a cair”, opina Letícia Souza, 46, com quem Raimundo divide o sobrado.

Há dois anos, o último morador do imóvel faleceu. Uma parte do telhado e da parede já havia caído, sem que nada fosse feito. “Entrei na justiça para notificar os herdeiros do imóvel. Eles alegaram falta de condições para fazer essa melhoria”, conta um dos vizinhos, Claudio de Carvalho, 49.

Por isso, decidiu sair por conta própria, com esposa e duas filhas, para uma casa alugada, afastada dali. “Eu consegui adentrar essa casa e fiquei estarrecido.As paredes estavam tortas e rachadas. [...] Essa casa foi uma oportunidade que tive de morar bem, num lugar com história”.

Mesmo em 1975, quando participou de um inventário do patrimônio baiano, o arquiteto Paulo Ormindo Azevedo catalogava problemas que se tornariam insustentáveis no futuro. Com a rede rodoviária que passou a ligar o sertão diretamente a Salvador, as mercadorias deixaram de ser transportadas por ali, pelo rio. A economia enfraqueceu, o êxodo foi inevitável.

“A cidade envelheceu. A conservação tem muito a ver com o dinamismo da economia. E essa economia foi fragilidade. Conservar pressupõe uso social”, acredita Paulo. Da década de 70 até 2010, diz o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, a população com mais de 45 anos passou a representar 23% dos 32 mil moradores - em 70, era 16%.

O Iphan, por meio do Projeto Monumenta, realizou intervenções em alguns dos imóveis para, também, incentivar o uso social.  Não foi o suficiente para estancar séculos de degradação.

A casa de Raimunda, viúva de Heraldo, por exemplo, está ameaçada pelo casarão vizinho, na Rua 13 de Maio. Já o proprietário do sobrado do Colombo, Raimundo sequer aceitou as condições do financiamento para reformar o imóvel. O mais recente capítulo do Colombo, ao que parece, poderia ter sido diferente. O próximo, como todo resto, é imprevisível. Como foi Cauby Peixoto, no meio da multidão. 

Cronologia do ápice e declínio do Colombo 1830: Construção de dois pavimentos do sobrado, em frente ao Rio Paraguaçu, no centro de Cachoeira 1859: Dom Pedro II é uma das personalidade que se hospedam no sobrado 1936: Aurélio Bouzas, nascido em Pontevedra, chega ao Brasil   1940: Aurélio inaugura o Hotel Colombo 1962: Filho de Aurélio, Heraldo se junta a dois amigos para criar a banda Os Tincoãs 1975: Família de Heraldo vende hotel, depois da morte de Aurélio, em 1972 1989: Enchente no Rio Paraguaçu prejudica cidade que já passava por declínio  1992: Novo dono vende para Raimundo, que fecha o hotel  2014: Prefeitura desapropria hotel para abertura de campus da UFRB 2016: Prefeitura desiste da ação de desapropriação do terreno 2018: Justiça reconhece desapropriação, mas Raimundo reivindica pagamento 19 de janeiro de 2019: Parte do sobrado onde funcionava o Hotel Colombo cai e começa luta pela não-paternidade.

*Com supervisão da editora Mariana Rios