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Da Redação
Publicado em 18 de abril de 2021 às 20:00
- Atualizado há 2 anos
Virou ditado popular da era moderna: em tempos de Whatsapp, receber uma ligação é prova de amor. Nem sempre, jovem. Quem não sofre com os inúmeros telefonemas desconhecidos, a maioria de São Paulo (011), não sabe o que é receber um DDI direto do inferno. Pior. Não basta importunar, ainda tem que bater o telefone na cara. Já passou por esta humilhação? Nem adianta colocar a culpa nos profissionais de telemarketing. Eles, de fato, estão apenas fazendo o trabalho deles. Quem aperta sua mente é a famigerada inteligência artificial (IA).
É bem simples tirar você do sério. Um robô liga para você. Ou melhor, ele liga para várias pessoas ao mesmo tempo. Os primeiros que atendem, são direcionados aos profissionais de marketing da empresa que pretende falar contigo. Os demais que excederam o número de atendentes, os robôs batem na cara, literalmente. A depender do programa que a empresa utilize, a IA ainda pode conversar contigo, pergunta seu nome e pede para aguardar. Enquanto uma atendente de telemarketing faz uma média de 300 ligações por dia, estes programas podem chegar a 1.500. É o conhecido spam.
A jornalista Alana Rocha já perdeu a paciência e uma chance de emprego graças a estas ligações. “Eu não sei de que inferno este cão misterioso arruma tantos telefones para me ligar. Já tenho quase 200 números bloqueados e todo dia recebo novas ligações. Já perdi a paciência. Quando é alguém na linha, peço para me esquecer e mando tomar no caneco”, conta. “Quando atendo e batem na minha cara, olho para o telefone e mentalizo todos os palavrões que queria dizer para eles. Com certeza chega via telepatia para alguém”, revela. Em um destes telefonemas, ela já atendeu xingando todos os nomes. O problema é que não era nenhuma empresa de telemarketing. “Desculpa, dona Alana. Somos de uma emissora de TV daqui do Rio e nos interessamos pelo seu currículo”, relembra a jornalista. Nunca mais a emissora ligou novamente.
Muitos baianos reclamam também que estas ligações misteriosas cresceram muito durante a pandemia, principalmente em 2021. Para o policial militar Edinei Dantas, as ligações que batem na cara não têm mais horário para acontecer. É de prejudicar até uma noite de amor com a esposa. “Eram mais de dez horas da noite. Estava daquele jeito, amaciando a ‘inha’. A zorra tocou, o celular não estava no silencioso. Vem logo o susto né, pensamos logo que aconteceu algo. Corri para atender e era essas ‘lá elas’. Atendi, mas desligaram. Foi de perder o tesão”, disse Edinei, que garante ter conseguido retomar o “serviço”.
Só no mês passado, 112 baianos fizeram uma reclamação formal contra ligações de telemarketing, segundo dados da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel). Este ano, o órgão federal recebeu 308 ocorrências no estado.
Não Perturbe! Desde 2019, a Anatel lançou o site Não Me Perturbe. Lá, é possível cadastrar o número ou operadora. Uma vez cadastrada, a própria empresa verifica o pedido e não liga mais. “O site Não Me Perturbe foi criado e é gerido pelas prestadoras de serviços de telecomunicações, que criaram essa iniciativa de autorregulação após provocação da Anatel. Todas as prestadoras que fazem parte da iniciativa assinam o Código de Conduta para Ofertas de Serviços de Telecomunicações por meio de Telemarketing, que estabelece, entre outros pontos, horários para ligações e respeito à lista de bloqueio”, disse a Anatel, por meio de sua assessoria.
Contudo, o recurso do site tem suas limitações. “O Não Me Perturbe vale somente para operadoras de telecomunicações e por isso não é acessível a milhões de brasileiros que não possuem acesso à informação e instrumentos práticos, como conexão à internet, por exemplo”, diz Diogo Moyses, coordenador de Telecom e Direitos Digitais do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), em nota. O recurso contempla apenas oferecimento de produtos. Cobranças não estão nesta lista. O jeito mais utilizado para minimizar os transtornos diários dos robôs de telemarketing é bloquear os números de forma manual. A cada ligação, um block. Os telefonemas podem até diminuir com o tempo, mas a lista de bloqueio cresce frequentemente. Uma solução mais viável é procurar alguns aplicativos de celular que bloqueiam estas inteligências artificiais que te ligam. Um dos mais conhecidos é o Truecaller, disponível para IOS e Android.
Com mais de 250 milhões de usuários pelo mundo, este ano os desenvolvedores do Truecaller divulgaram um estudo em que os brasileiros estão no topo do ranking de pessoas que sofrem com ligações indesejadas. O brasileiro recebeu, em 2020, uma média de 49,9 ligações spam, por mês. Antes da pandemia, em 2019, o número chegava a 45,6. Os Estados Unidos, segundo no ranking, tiveram uma média de 28,4, por mês. Este aplicativo inclusive consegue identificar de onde vem a ligação robotizada que desliga na cara. E vale um alerta. Neste primeiro ano de pandemia, 48% das ligações consideradas spams pelo aplicativo foram considerados fraudes. O maior problema é que, casualmente, os aplicativos podem bloquear telefones de outros estados que seriam de pessoas comuns. Mesmo com o risco, o advogado e professor de Direito Previdenciário, Fabrício Oliveira, preferiu utilizar aplicativos de bloqueio, mesmo com a possibilidade de perder alguns convites de palestras fora da Bahia.
“Se tem uma coisa que me incomoda são ligações de telemarketing. A gente pode não atender, mas o som da chamada incomoda o dia inteiro. Me cadastrei no Não Me Perturbe, mas decidi bloquear e silenciar qualquer ligação que não esteja na minha agenda. Eu perco negócio, mas não atendo mais. O que salva também são as ligações de Whatsapp”, conta.
Justiça Advogado na área cível, Felipe Ventin tem alguns casos de clientes que cansaram de telefonemas desconhecidos foram ao extremo. Procuraram a justiça, por meio do Procon, Ministério Público ou até a Defensoria Pública. Segundo o profissional, os casos cresceram bastante durante a pandemia, mas os processos continuam como sempre: devagar, quase parando. “Infelizmente aqui na Bahia a Justiça é complicada. Mas em outros lugares do Brasil, os consumidores estão conseguindo indenizações. O problema não é o telemarketing em si, mas a abusividade dessa abordagem e, sobretudo, as chamadas incompletas, que geralmente se dão em razão de cobrança de dívidas, como forma de assediar o devedor e importuna-lo, constrange-lo”, disse Ventin.
O aumento de casos de ligações indesejadas também se deve ao vazamento de dados de mais de 220 milhões de brasileiros, vivos e mortos, como CPFs, endereços e, lógico, números de telefone. Criminosos colocaram à venda estes dados. No mês passado, a Polícia Federal prendeu dois suspeitos pelo maior vazamento de dados da história no país.
Por incrível que pareça, o Código de Defesa do Consumidor não tipifica estas ligações excessivas que incomodam o consumidor como infrações penais. Por isso, a maioria esmagadora dos casos não chega à esfera criminal, indo direto para a área cível com ações indenizatórias. Para a delegada da Delegacia do Consumidor (DECON), Dra. Aparecida, queixas de telefonemas nesta área são raras. O PROCON-BA, por exemplo, não tem um número exato de queixas, pois encaminha todos diretamente para a Anatel.
“Incomoda muito, de fato. Podemos entender que se trata de importunação, por exemplo, mas depende muito do entendimento do juiz. O Código de Defesa do Consumidor não tipifica como crime. Não tem como a gente enquadrar este tipo de ação. O que o consumidor pode fazer é tentar a ação indenizatória nos ajuizados cíveis. Lá, inclusive, é possível descobrir a origem dos telefonemas que desligam quando atendemos”, disse a doutora.
O Superintendente do PROCON-BA, Filipe Vieira, dá o caminho para resolver e identificar os autores. “A abusividade não é algo fácil de provar, nem mesmo de se configurar pelo excesso de ligações. O consumidor pode anotar as ligações ou pedir os registros de histórico de chamadas junto a operadora e, com isso pedir o bloqueio das ligações de um chamador”, sugere.
Foi justamente o que Alessandra Batinga fez. Ela recebia 20 ligações por dia, a maioria dos robôs que batem na cara. Com paciência, Alessandra aguardou o dia que foi direcionada ao telemarketing. Bingo! “Eu já ganhei duas ações. Eu consegui atender algumas ligações e saber de onde vinham. Entrei no juizado e ganhei danos morais e multa por descumprimento de sentença. O juiz estabeleceu que a cada ligação fosse pago um valor. Uma empresa obedeceu, outra não. Me deram uns trocados nessa brincadeira”, conta. Cadê meu advogado?