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Da Redação
Publicado em 22 de maio de 2023 às 05:01
- Atualizado há um ano
Eles são filhos de empregadas domésticas, trabalhadores rurais e motoristas de ônibus. O que possuem em comum? São os primeiros da família a entrarem no curso de Medicina na Universidade Federal da Bahia (FMB/Ufba). Para isso, precisaram nadar contra uma maré de obstáculos econômicos e sociais que tentavam, incansavelmente, afastá-los dos seus objetivos. O CORREIO conta histórias de jovens que ajudam a mudar a cara do curso historicamente branco e elitizado em Salvador, cidade de população majoritariamente negra.
Durante os quatro longos anos que se desdobrou para conseguir estudar para o vestibular e trabalhar, a pernambucana Erica Maria Silva, 31 anos, fez de tudo. Mudanças de cidade e de curso, trabalho como atendente de telemarketing e professora de redação foram algumas das maneiras encontradas para driblar as adversidades. Mesmo assim, tiveram vezes que o pouco dinheiro na carteira servia para pegar o ônibus ou completar o valor do aluguel.
"Uma vez faltavam 10 reais para pagar o aluguel e eu não tinha. Liguei para minha mãe e ela não podia me ajudar, paguei devendo esse valor”, relembra Erica dos momentos difíceis. Filha de diarista, ela não pôde contar com ajuda financeira da família enquanto estudava e pensou incontáveis vezes em desistir.
“Na reta final, eu estava tão cansada de estudar e via pessoas com vidas totalmente diferentes da minha passando em Medicina, que cheguei a acreditar que aquilo não era para mim”, conta. A tão sonhada aprovação veio em 2019, por meio das cotas de critérios raciais, socioeconômicos e escolaridade. O primeiro passo para se tornar a primeira médica da família estava dado, mas, para isso, ela precisou se mudar para a capital.
O que encontrou, quando entrou na Faculdade de Medicina, foram colegas e professores com origens diferentes da dela. “Pelos discursos dos professores e dos alunos, é quase como se eles dissessem 'você é preto e pobre' e, 'se dependesse de nós, não estaria aqui'”, desabafa a estudante. Para ela, o ambiente universitário, no entanto, tem se tornado mais plural.
Um semestre antes da entrada de Erica na Ufba, a banca que examina a veracidade da autodeclaração como pessoa negra foi aplicada. “A partir da implementação da banca examinadora, o perfil dos alunos começou a mudar. Antes, era muito raro ver pessoas pretas e pardas no curso de Medicina; a gente percebe mudanças com o passar dos anos”, analisa. Hoje, dos 1.015 alunos da FMB/Ufba, metade é formada por cotistas.
Carga horária reduzida A cada semestre, 80 novas vagas são abertas no curso de Medicina, sendo que 40 delas são reservadas para cotistas. O olhar atento para a mudança do perfil dos novos alunos, muitos que precisam trabalhar para se manter, fez com que a FMB optasse por reduzir em 1.590 horas a carga horária da graduação. A mudança começou a valer este ano.
“Nós passamos por uma reformulação curricular que atende a demanda do novo perfil dos estudantes. Não são todos que podem se dedicar o dia inteiro aos estudos”, explica Sandra Dantas, pedagoga da Faculdade de Medicina da Ufba. Sandra Dantas, pedagoga da Faculdade de Medicina, destaca medidas tomadas para atender demandas de cotistas (Foto: Marina Silva/CORREIO) Entre os estudantes que vão se beneficiar da medida está Leonardo Pereira, 22. O jovem, natural de Ourolândia, no centro-norte baiano, precisou conciliar os estudos com o trabalho pesado na roça de sisal. Léo manteve os pés no chão quando decidiu que faria Medicina. Apesar do gosto pela Biologia, o retorno financeiro no futuro foi o que mais lhe impulsionou.
"Às vezes as pessoas têm a escolha de fazer o que amam e ganhar alguma coisa quando se formam em áreas menos rentáveis. Mas esse não é meu caso e a questão financeira pesou bastante”, conta. Leonardo Pereira vive em residência mantida por prefeitura do interior e tem benefícios de assistência estudantil (Foto: Ana Albuquerque/CORREIO) Enquanto a mãe e os irmãos continuam o trabalho braçal no interior, o jovem está no front da batalha pela permanência estudantil. Leonardo mora em Brotas, em uma residência mantida pela prefeitura de sua cidade natal. Não fosse esse auxílio, não teria como se manter em Salvador.
Se a aprovação no vestibular veio com a leveza de quem sempre se deu bem nos estudos, a rotina na capital é densa. Leonardo tem aula durante todo o dia e, apesar das três refeições garantidas na residência, nem sempre consegue voltar para casa.“Quando eu tenho tempo, venho almoçar na casa de acolhimento, mas quando passo o dia na faculdade, fico sem comer”, diz. As dificuldades financeiras e as barreiras sociais são grandes empecilhos para a permanência dos cotistas que são aprovados na Faculdade de Medicina na Ufba. Mesmo diante das circunstâncias, eles se destacam pelas boas notas e dedicação.
“Os estudantes cotistas, do ponto de vista da formação acadêmica, são os melhores. O que sentimos é a fragilidade no sentido psicossocial porque garantir a entrada dos alunos não lhes garante a permanência serena”, ressalta Luis Fernando Adam, diretor da FMB. Luis Fernando Adam, diretor da FMB/Ufba, diz que alunos cotistas estão entre os melhores em desempenho acadêmico (Foto: Marina Silva/CORREIO) Nesse sentido, a Pró-Reitoria de Assistência Estudantil (Proae) trabalha para garantir bolsas aos alunos mais pobres. Apesar do incentivo, ele não é o suficiente para atender todo o corpo estudantil.
Esperança As vivências como mulher negra e moradora da periferia na graduação de Lorraine Ribeiro, 27, não foram das mais fáceis. Nos nove anos que passou como estudante da Ufba, entre o Bacharelado Interdisciplinar (BI) e a Medicina, a médica teve pouco contato com colegas como ela. Filha de motorista de ônibus e uma professora, as condições financeiras na residência no bairro de São Marcos nunca foram fáceis.
Para que os pais não precisassem arcar com os custos de um cursinho pré-vestibular, Lorraine optou por entrar no BI e adiar em três anos o sonho da Medicina. Quando se formou no bacharelado, conseguiu uma das vagas no curso desejado desde que era pequena.
Mas o caminho até o diploma foi turbulento. A médica sofreu racismo, o que ficou ainda mais evidente quando se tornou dançarina de uma banda de pagode, no segundo semestre. “Eu sofri perseguição de professores, fui reprovada em matérias sem motivo, deixaram de aceitar até atestado médico”, relata.
O diretor da Faculdade de Medicina, Luis Fernando Adam, afirma que não possui registro formalizado de nenhuma denúncia de racismo, mas admite que a graduação não está imune de preconceito. “Não temos como dizer que não existe [racismo], mas se relatos desse tipo chegarem à direção, nós temos a obrigação de investigar”, pontua.
Corpo docente Um dos entraves para tornar o ambiente universitário mais plural é o corpo de professores, formado, majoritariamente, por pessoas brancas, que dão aula no curso de Medicina desde a década de 1980. A Lei 12.990/2014 reserva aos negros 20% das vagas de concursos para professores de universidades federais, o que só começou a ser aplicado na Ufba em 2018.
Samuel Vida é docente do curso de Direito da Ufba e idealizador do Programa Direito e Relações Raciais, que analisa a realidade das comunidades negras dentro e fora da academia. Para ele, os caminhos para uma universidade verdadeiramente democrática precisa passar por mudanças subjetivas.
“Um ponto de inflexão fundamental radical na necessidade da universidade reconhecer a sua limitação de monoculturalidade, eurocentrismo e colonialidade. Num país tão diverso, é contraproducente que se mantenha um legado epistemológico monocultural”, defende.
*Com orientação da chefe de reportagem Perla Ribeiro.